Barack Obama: "Há qualquer coisa de espiritual nele"

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Barack Obama Jonathan Ernst/Reuters

Teve que viajar de Chicago até uma aldeia queniana junto das margens do Lago Vitória para se encontrar. A vida de Barack Obama, o candidato democrata à Casa Branca, dava um livro. Ele já o escreveu. Aos 33 anos.

Obama é branco e é negro. É do Kansas e é do Quénia. Nasceu no Havai, cresceu na Indonésia, estudou em Los Angeles e Nova Iorque e construiu a sua carreira profissional e política em Chicago. Obama é exótico. Obama é diferente. Obama é uma estrela rock. É sexy. Os americanos ficaram de imediato excitados com o candidato. "Há qualquer coisa de espiritual nele", diz Kris Schultz responsável do site Run Obama, criado em 2006 para "convencer" o senador de 45 anos a candidatar-se à presidência dos Estados Unidos. Convencido, Obama confirmou em Fevereiro do ano passado, no Illinois, a sua candidatura à Casa Branca, uma ambição que está agora à beira de conquistar.

Há 12 anos, quando era ainda uma figura em ascensão na cena política de Chicago, escreveu as suas memórias, um livro de auto-descoberta que se tornou num best-seller nacional quando Obama foi eleito senador pelo estado de Illinois em 2004. Um livro de memórias aos 33 anos? O próprio explica que se trata do relato "de um rapaz à procura do seu pai, e de como através dessa busca encontrou um significado prático para a sua vida como um negro americano".

Dreams from my father, A story of race and inheritence começa no meio da história, em Nova Iorque, quando o estudante universitário Barack recebe um telefonema de longa distância a informá-lo que o seu pai tinha morrido num acidente de carro no distante Quénia. "Na altura da sua morte, o meu pai permanecia um mito para mim", escreve Obama. De Barack Hussein Obama, o filho só conhecia as histórias que a mãe e os avós lhe foram contando ao longo da infância e da adolescência. Ao vivo, e que Obama se lembre, só conheceu o pai uma única vez, quando este o visitou no Havai tinha o jovem "Barry" dez anos. Antes disso não conta, porque o pai deixou a sua família americana quando o filho tinha dois anos.

E quem era Barack pai? "Era um africano", escreve Obama. Um queniano da tribo Luo, nascido nas margens do Lago Vitória num sítio chamado Alego. A aldeia era pobre, mas o seu pai – o avô Hussein – tinha sido um agricultor importante, um ancião da tribo, um curandeiro. "O meu pai cresceu a pastar as cabras do seu pai e a estudar na escola local, estabelecida pela administração britânica, onde se revelou um aluno promissor." De Alego partiu para Nairobi com uma bolsa de estudo e depois seguiu para os Estados Unidos, integrando a primeira vaga de africanos que foram enviados (com fundos ocidentais) para o "Primeiro Mundo" para se formarem a fim de regressarem a casa com as ferramentas necessárias para "construir uma nova e moderna África".

Em 1959, com 23 anos, chegou à Universidade do Havai como o único estudante africano da instituição. Em três anos graduou-se em Econometria como o melhor da turma. Foi também o mentor e primeiro presidente da Associação Internacional de Estudantes da universidade. Conta Obama, filho: "Num curso de russo, [o meu pai] conheceu uma americana tímida, que tinha apenas 18 anos, e os dois apaixonaram-se. Os pais da rapariga a princípio mostraram-se muito prudentes mas depois foram conquistados pelo seu charme e a sua inteligência; os dois casaram-se e tiveram um filho que recebeu o nome do pai."

Depois..., bem, depois Barack não podia parar. Deixou a sua recém-inaugurada família para ir para Harvard, onde se doutorou, e regressou ao Quénia onde tinha a sua missão por cumprir.

Obama, o filho, ficou com "os brancos do Kansas" (mãe e avós) a viver despreocupadamente os primeiros anos da sua infância em Honolulu, uma cidade onde as tensões raciais não se faziam sentir de forma tão intensa como no resto do país. Sobre os avós do Kansas, Obama escreve que a sua postura anti-racista nunca foi algo assumidamente político. "O teu pai e eu apenas chegámos à conclusão que devíamos tratar decentemente as pessoas", explicou-lhe a avó, enquadrando desta forma as histórias meio inventadas de actos heróicos em defesa da tolerância racial contadas pelo seu avô.

Festas com cocaína

Quando tinha seis anos, Anna, a sua mãe, voltou a casar, desta vez com um indonésio chamado Lolo, que tentou ensinar ao enteado Barry que era sempre melhor ser forte do que fraco, ou, na pior das hipóteses, ser fraco mas estar sempre do lado dos mais fortes. Dos quatro anos que viveu em Jacarta, Obama recorda no seu livro os cheiros exóticos e a pobreza extrema; as lições de boxe dadas pelo padrasto, a solidão da mãe e os pedintes a quem aprendeu a não dar esmolas. Foi na Indonésia que Obama aprendeu, antes dos dez anos e muito antes de chegar a África, que "o mundo era violento, imprevisível e cruel".


A experiência indonésia terminou quando Obama foi enviado pela mãe de novo para o Havai para estudar na respeitada Punahou Academy. A viver com os avós, típica classe média branca remediada (ele era vendedor e ela trabalhava num banco), Barry enfrentou na adolescência os primeiros embates da realidade de ser um afro-americano, uma identidade que lhe era tão imposta pelos outros como desejada por si próprio - era esse o legado principal do seu pai-mito.

No liceu tinha amigos brancos e amigos negros. Ia às festas de uns e dos outros. Falava "à branco" ou "à preto", integrava-se em ambas as realidades mas angustiava-se por não pertencer verdadeiramente a nenhuma delas. Tentou misturá-las, mas não conseguiu. Nas suas memórias sucedem-se recordações de momentos seminais que foram cimentando a sua identidade afro-americana, a mesma de Martin Luther King e de Malcolm X, heróis inspiradores assumidos.

Passou a ir só às festas dos "irmãos". Festas onde se bebia muito, fumava-se ainda mais, engatavam-se raparigas, enrolavam-se charros de marijuana e, "quando havia dinheiro", cheirava-se alguma cocaína. A fronteira para a "autodestruição" nunca foi ultrapassada e Obama saiu-se suficientemente bem no liceu para poder escolher, entre várias ofertas de bolsas, a que queria para prosseguir os estudos. O eleito foi o Occidental College em Los Angeles, Califórnia por onde passou sem nunca ter posto um pé nos bairros mais problemáticos da Cidade dos Anjos.

Seguiu-se a Universidade de Columbia (também uma de várias escolhas possíveis para o promissor estudante de Direito). Nova Iorque foi a cidade onde enfrentou pela primeira vez na sua vida uma tensão racial inescapável. Uma tensão que, escreve Obama, "fluía livremente, não apenas nas ruas mas também nas casas de banho da Universidade, onde por muito que a Administração tentasse pintá-las de novo, as paredes estavam sempre riscadas com a correspondência frontal entre brancos e negros. Era como se todo o terreno intermédio tivesse colapsado".

Morre Barry, nasce Barack

Terminado o curso em Columbia, o jovem advogado recebeu várias ofertas de emprego em grandes empresas, mas o que ele decidiu (em 1983, quando tinha 22 anos) é que queria ser "organizador comunitário". Escreveu cartas para dezenas de sítios a oferecer os seus préstimos demasiado cotados para aquele tipo de trabalho. Sem respostas de lado nenhum, acabou por trabalhar para uma multinacional durante um ano, bem pago, bem vestido e bem comido. Até ao dia em que recebeu uma carta de Chicago.


Idealismo político era o que não faltava em Obama. Na altura já não queria ser tratado por Barry, mas sim Barack. Não queira mudar o mundo, queira "ajudar os pobres a mobilizarem-se para melhorarem as suas comunidades". O seu novo emprego era num pequeno grupo ligado à igreja, que estava a tentar ajudar os residentes de um dos bairros mais pobres do South Side de Chicago a reagiram a uma vaga de encerramentos de fábricas que deixaram no desemprego e no desespero centenas e centenas de famílias.

Frustrante, cansativo, mal pago e por vezes pouco edificante. Foi assim o dia-a-dia de Obama durante três anos. Três anos que "comem" grande parte de Dreams from my father num relato exaustivo do desespero vivido nos bairros degradados das grandes cidades americanas, das políticas inadequadas e da autodestruição dos negros.

De Chicago, Obama partiu para Nairobi com a sua meia-irmã Auma numa viagem há muito desejada e temida para tentar "preencher um vazio imenso"."E se eu estiver errado? E se a verdade só me desapontar, e a morte do meu pai não tiver significado nada, e o facto de ele me ter deixado para trás não significar nada, e se a única ligação entre mim e ele, ou entre mim e África, for um nome, um tipo de sangue ou motivo de chacota para os brancos?"

Mas Obama não estava errado. No Quénia descobriu uma família, as raízes num povo que sentiu ser o seu e caminhou confortável pelas ruas de Nairobi, sentindo em todo o lado a presença do pai pedindo-lhe que "compreendesse". É que o mito, afinal, tinha sido apenas um homem cheio de ilusões, generoso mas também egoísta, forte mas vulnerável, grande e mesquinho.

Em Alego, a aldeia onde tudo começou, e ajoelhado junto das sepulturas do pai e do avô, Obama chorou cumprindo um luto adiado e "compreendendo" finalmente as suas origens africanas.

O vazio desaparecera. Estava pronto para regressar. À sua espera estava Harvard, a advocacia e o ensino em Chicago, a futura mulher Michelle, o Senado. E agora, quem sabe, a Casa Branca.

(Texto publicado originalmente a 12/2/2007)
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