As desistências úteis no Ministério da Ciência
Os problemas em ciência são tão conhecidos que até pessoas fora do meio os enumeram. Falta de estratégia e previsibilidade, precariedade e sobretudo um pobre financiamento público intrínseco.
Desistir não deve ser apanágio, de ninguém. A não ser que a desistência, num determinado momento, tenha lógica, por exemplo por estarmos a cair no que, em Medicina, se designa por “obstinação terapêutica” (ministrar tratamentos que se sabe serem inúteis). Na ciência essa tentação existe em muita gente; só não aparece mais porque, na verdade, após anos de treino, produção de bons resultados (por vezes mesmo brilhantes), e expetativas (realistas ou menos) que se têm escutado, muitos não conseguem sequer pensar de outra maneira, ou fazer outra coisa.
Para dar um exemplo absurdo (mas real), têm-se recrutado novos alunos de doutoramento cujo horizonte temporal de emprego (quatro anos de bolsa) será maior do que o dos investigadores que se propõem orientá-los. E só podemos compreender, não é? Porque não se pode desistir do que acreditamos ser possível no meio de uma realidade por vezes desesperante, certo? Mas, se desistir por desistir não pode ser solução, temos de admitir um sentimento crescente de pena (tanto quanto de revolta), muito diferente da habitual insatisfação (crónica) que faz parte integrante da atividade científica, e sem a qual nunca chegaríamos muito longe. Sobretudo quando vemos temas a repetir-se, de vários modos, num cíclico dejà vu.
Para além das realidades paralelas de instituições de ensino superior e centros de investigação (os segundos mais ou menos dentro das primeiras) que terão, forçosamente, de se cruzar (mais), os problemas em ciência são tão conhecidos que até pessoas fora do meio os enumeram. Falta de estratégia e previsibilidade, precariedade; mas, sobretudo, um pobre financiamento público intrínseco (isto é, não majorado com “balões” como os fundos europeus, ou oportunidades não aproveitadas como o Plano de Recuperação e Resiliência- PRR). Esse deve ser o verdadeiro indicador do quanto o Estado valoriza a ciência.
Se valorizamos menos do que outros países (e estou a pensar apenas em realidades comparáveis), não podemos espantar-nos com o resultado final. Se fosse diferente é que seria estranho. Na verdade, desde 2018 (apenas para citar casos mais recentes) se repetem Manifestos a denunciar as questões que enfermam a ciência portuguesa e a propor soluções, que só podem ser de longo prazo. Protestos esses que se terão de se continuar a repetir; vindos de uma comunidade que muito raramente se organiza. E que, na próxima legislatura, se vai ter de continuar a (tentar) organizar. Talvez ainda mais, porque pior é sempre tão possível quanto o contrário.
Manuel Heitor preparou-se para ser ministro da Ciência e Ensino Superior, desde logo com o Livro Negro da Avaliação Científica em Portugal (2015). Um dos co-autores desse texto era o meu colega Carlos Fiolhais, que, em 2023, assina o prefácio do livro O Futuro da Ciência e da Universidade (Almedina), co-coordenado pela ex-ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues (atual Reitora do Iscte- Instituto Universitário de Lisboa). A obra resulta de um evento realizado em dezembro de 2022, espoletado pelos 50 anos da reforma educativa de Veiga Simão, que, com o Manifesto para a Ciência em Portugal de José Mariano Gago de 1990 (viria a tornar-se ministro da Ciência e da Tecnologia em 1995), constituem dois momentos fundamentais no desencadear de um processo evolutivo que nos trouxe ao limiar de uma possível grandeza em ensino, ciência e inovação.
Mas, ao contrário dos sucessos ao nível do aumento da formação universitária, o processo estagnou desde os tempos da troika (2011 até hoje), como todos os indicadores mostram, mesmo que sejam “massajados”, sendo o subfinanciamento do ensino superior, a falta de estratégia para a retenção de talento ou o (não) investimento de empresas em I&D apenas casos por demais flagrantes.
Sendo mesmo muito interessante de outros pontos de vista (ligação à sociedade, inovação pedagógica, revisitação da meritocracia, papel da língua portuguesa na universidade), quanto à ciência o livro, sendo importante por repisar problemas e atualizar números, não surpreende, mas apenas porque não pode. Como não são novas as soluções apontadas, muitas delas contraditórias; o que é natural, dado serem contributos de muitos autores, com ideias distintas. A roda já foi inventada, está é estacionada. Ou temos várias rodas, e não conseguimos escolher uma. Ou sabemos fazer rodas, mas faltam matérias-primas. Ou qualquer metáfora circular desse tipo.
Na verdade, é de certo modo triste que uma das mensagens mais impactantes do livro neste contexto seja uma ideia de Ernâni Lopes, citada por Pedro Saraiva: “Quase nunca Portugal está no quadrante que combina visão estratégica e capacidade de realização. Por vezes, pensamos e não fazemos; outras vezes fazemos sem pensar no que estamos a fazer; e quando as duas coisas acontecem em simultâneo então, sim, surge a tal transformação.”
Em ciência as duas coisas coincidiram, até agora, com José Mariano Gago; e de forma imperfeita, relacionada com a sua desconfiança crónica para com as universidades, descolando delas os centros de investigação o mais que pode. São esses ecos que temos de resolver hoje. Só que, neste momento, curiosamente, faltam ambas as coisas, considerando, quer o orçamento caricato da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), sobretudo para projetos, quer a estratégia (?) global do PRR nesta área. Urge criar um ciclo virtuoso, que, de baixo (laboratórios) para cima (vários graus de poder), e de cima para baixo, nos inspire e potencie. Não é um problema só da ciência? Pois não, mas a ciência sempre se fez ouvir menos. E vamos ver o que o futuro nos reserva.
Das pastas ministeriais que melhor posso discutir tenho de muitos dos para elas escolhidos (passados e, até, presumivelmente, futuros) excelente opinião. Desde que cinja essa opinião ao seu pensamento e ideias em abstrato, ou ao que fizeram fora dos respetivos ministérios. Note-se que a ainda ministra com a tutela, Elvira Fortunato, assinou alguns dos Manifestos reivindicativos no passado, enquanto investigadora. Embora depois parecesse nunca ter ouvido falar neles, ou desconhecer os problemas que levantaram (alguns por ela mesma). Tentando, ao invés, muitas soluções em simultâneo, cuja integração não é óbvia, e de cujo alcance se duvida; porque, podendo ser bem-intencionadas, passam ao lado do âmago da questão, e, sobretudo, não envolveram devidamente quem as tem de por em prática. O potencial disruptivo (não necessariamente num bom sentido) destas medidas ficará para outros resolverem. Talvez nada disto seja de espantar, porquanto Manuel Heitor também assinou um dos Manifestos, e já era ministro. Ou seja, assinou “contra” si próprio.
Estes dois comportamentos resumem as duas hipóteses que consigo imaginar: haver uma metamorfose espantosa por parte de pessoas de bem assim que tomam posse; ou esses mesmos indivíduos não conseguirem fazer nada do que pretendiam apesar de muito empenho e boa vontade, por motivos variados (orçamentais, políticos, estratégicos, pessoais, legais, burocráticos, desconhecimento da verdadeira dimensão das pastas/problemas, não querer fazer ondas, pressa em deixar “marca” e boa imagem, receio do erro, peso da “máquina”, etc.).
Na minha atual posição de vice-reitor posso garantir, com zero hesitações, que percebo isso tudo mesmo muito bem. Mas, pelo menos, é sempre possível dizer (mais) verdade, e tentar trazer (mais) os interessados para o lado da solução. Embora talvez seja proibido em política (onde costuma reinar o otimismo típico do Dr. Pangloss no Governo, e o seu contrário na oposição), é obrigatório em ciência. Em alternativa resta bater com a porta, denunciando o que houver para denunciar, evitando ser conivente com uma realidade contra a qual (noutra vida, aparentemente) se lutou com todas as forças. Essa sim, seria uma desistência potencialmente corajosa; até útil.
Dito isto, espero tudo de bom dos próximos responsáveis pela ciência em Portugal, como sempre. Mesmo considerando a alta probabilidade de quem entrar jurar que encontrou uma situação catastrófica, e quem saiu argumentar que foi apenas porque não teve tempo/condições para implementar medidas. E todos terão certamente (alguma) razão. Por isso, apesar da esperança quase involuntária e da admiração por quem arrisca ter responsabilidades públicas, confiarei sempre mais em quem aceita ser responsável pelos seus centros, projetos, teses, laboratórios, experiências. E que faz coisas (quase) impossíveis, pelas quais vale sempre a pena lutar.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico