E o MoMA criou a boneca

Anunciada como um dos acontecimentos do ano no MoMA, Björk, a retrospectiva da carreira da artista islandesa, está a ser alvo de enorme vaia da crítica e a gerar muitas interrogações acerca das opções programáticas do museu. A história da influência artística de Björk está por contar.

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Em vez da artista, dizem os críticos, o MoMA escolheu uma boneca sem densidade, estereotipada, sem surpresa face ao que já sabemos dela. Björk no museu não é a Björk dos discos, do palco, dos ecrãs. É um produto acabado pronto a vender sem sugerir questões TIMOTHY A. CLARY/AFP
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Uma rapariga percorre a sétima avenida em cima de um atrelado em hora de engarrafamento cantando e dançando a um ritmo que mistura house e electrónica e uma voz capaz “quebrar a barreira do som”, como a descreveu o crítico Alex Ross, autor do livro O Resto É Ruído.

Nessa voz, ela cantava: I can sense it, something important is about to happen, it’s coming up and takes courage to enjoy it… O vídeo a preto e branco da quarta canção de Debut é uma das primeiras imagens que muitos guardam de Björk Guomundsdóttir. Ela tinha 28 anos e começava uma carreira a solo depois de deixar a banda que fundara em 1986, os Sugarcubes, a sua última experiência profissional num percurso que começara aos 12 anos, teve influência do punk mas insistiu sempre na música experimental de raiz electrónica. A letra seria analisada como prenúncio do que se seguiu. Em pouco tempo Björk tornava-se um fenómeno global e em 2000, sete anos apenas após esse vídeo, Klaus Biesenbach, curador do MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, convidava-a para protagonista de uma exposição naquele museu de Nova Iorque, bem perto do cenário que serviu à islandesa para filmar Big Time Sensuality e internacionalizar-se. A resposta dela foi não.

E seria não por mais 12 anos. Em 2012, quando o convite voltou a repetir-se, Björk disse finalmente sim a uma retrospectiva sobre a sua carreira e a exposição foi anunciada em Junho como um dos grandes acontecimentos do museu para 2015. Seria o ano Björk, como 2013 fora o ano Bowie, quando surgiram biografias, o músico lançou um álbum novo, Next Days, e o museu Victoria & Albert de Londres inaugurou a exposição Bowie is, que tentava desvendar o mistério da influência de David Bowie, então com 66 anos, no imaginário colectivo. Justamente dois anos depois, esperava-se qualquer coisa de semelhante com a retrospectiva de Björk. A expectativa era justificadamente alta. No texto distribuído aos jornalistas, o museu insistia na palavra "experiência". Tudo parecia montado para a grande entrada no universo de uma artista que cruza disciplinas como o cinema, a fotografia, a moda ou as artes plásticas, fazendo a sua síntese exemplar.

O dia chegou e o facto é que abriu com uma vaia histriónica. Björk, a retrospectiva de mais de 20 anos de carreira da multifacetada islandesa, está a merecer críticas severas por parte da imprensa mundial e é pretexto para questionar algumas das mais recentes e mediáticas opções de programação do MoMA. A ser preparada há três anos numa colaboração entre Klaus Biesenbach e a própria Björk, é uma viagem visual e auditiva pelo trabalho da artista que em Novembro deste ano completa 50 anos e coincide com o lançamento do seu nono álbum a solo, Vulnicura. Se o modo como a retrospectiva foi sendo apresentada fazia crer numa mostra capaz de reflectir a complexidade e multiplicidade do trabalho, assim como a enorme ambição e capacidade de se reinventar da cantora, compositora e performer, acontece que a grande encenação em cada uma das salas onde está instalada parece limitar-se a ser uma viagem cronológica, pastiche de som e imagem, incapaz de problematizar, contextualizar ou questionar muitas das decisões tomadas ao longo de 22 anos a solo, desde Debut, em 1993. 

A chegada ao museu
É aí que a exposição começa, ignorando (propositadamente) o resto da biografia artística desta mulher que nasceu em Reiquejavique a 21 de Novembro de 1965 e que anos mais tarde colava o nome do seu país ao dela. Inseparáveis no imaginário que passou a ser colectivo e que estão, de forma mais ou menos notória, em cada um dos trabalhos da autora, em cada uma das suas metamorfoses.

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Uma viagem visual e auditiva pelo trabalho da artista que em Novembro completa 50 anos e coincide com o lançamento do seu nono álbum a solo, Vulnicura TIMOTHY A. CLARY/afp
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Na semana anterior à inauguração, esses muitos rostos em várias fases de uma vida artística surgiam numa das fachadas do edifício da rua 53. Björk chegava ao mais mediático museu de Nova Iorque quase na mesma altura em que o camaleónico David Bowie se mudava de Londres para a Philarmonie de Paris com Bowie is. No final de Fevereiro, o francês Le Figaro juntava-os na mesma capa, um rosto metade Björk, metade Bowie, composto que pretendia representar a “síntese do espírito avant-garde” enquanto falava de almas gémeas na excentricidade, protagonistas de um “filme gótico e high-tech”, criadores de um bestiário, “heróis meio vampiros meio robots” que com os seus universos particulares tinham chegado ao museu. As personagens que um e outro criaram - Ziggy Stardust, Major Tom ou Aladdin Sane, por Bowie, ou os elfos, plantas, as geishas e os robots de Björk - surgem como exemplares desse impulso que ambos manifestam de se metamorfosear, intérpretes transformistas de ficções que partem da música para outros contágios e obedecem a um plano preciso: o de nunca se repetirem e serem ao mesmo tempo inventores e porta-vozes de um tempo que trazem do futuro para o presente. É assim que um e outro chegam ao museu, aqui o legitimador final de uma influência universal. Mas enquanto Bowie is mereceu o aplauso, Björk está a revelar-se uma desilusão.   

“Um espectáculo bizarro, sem ambição e definitivamente sem qualquer lógica”, escreve o crítico e escritor Jason Farago no britânico The Guardian, num texto inspirado onde tenta explicar porque é que Bjork, a exposição, não conta a história que deveria contar. Ou seja, a de “uma mulher de fala calma que vem de um dos países mais pequenos do mundo, alimentando uma geração de designers, realizadores de cinema e músicos e nesse processo fez a fronteira entre arte e cultura pop”. A crítica do New York Times, Roberta Smith, refere-se à retrospectiva como o sinal gritante da necessidade de o MoMA “querer ser tudo para todos os públicos”, revelando “desdém pelo seu público-alvo”, “fraqueza curatorial frequente” e indiferença à “manipulação de multidões” e às necessidades dos seus visitantes. Björk devia ter-se mantido firme no seu não ao MoMA, começou, antes de mais, por dizer nessa crítica arrasadora para com os organizadores da exposição e a direcção do museu que considera estar a perder a capacidade de discernir entre o que é comercial e o que é arte moderna. “O moderno aqui não é o tema”, escreve. Na Artnet News, Ben Davis não é mais generoso. Fala de algo entre um desfile de moda e uma visita a um parque temático. Na Vulture, Jerry Saltz fala de um acontecimento “embaraçoso” numa “programação pop embaraçosa” que tem caracterizado o museu de Manhattan nos últimos anos. E enumera o que outros já têm vindo a enumerar: a actriz Tilda Swinton a dormir uma sesta de seis horas numa caixa de vidro colocada no átrio principal (2013); a exposição do trabalho de Tim Burton com os artefactos que usa nos filmes (2012); a performance de Marina Abramovic que recebia pessoas e as convidava a sentar e a olhá-la nos olhos num exercício de intimidade, em 2010. Trabalhos que dividem a crítica face ao que deveriam ser as preocupações programáticas do museu com a maior colecção de arte moderna do mundo, para a qual reserva um espaço limitado, atendendo preferencialmente aos chamamentos de um universo mais mainstream.         

Tudo isto, ou seja, a polémica em que o museu tem estado envolvido, sobretudo desde o momento que se mudou, em 2001, para o edifício projectado pelo japonês Yoshio Taniguchi, tem tido pequenas pausas. Mais do que a colecção, o MoMA passou a ser uma marca que continua a expandir-se. Há dois anos, ameaçou demolir o edifício ao lado, onde estava o Museu de Arte Tradicional Americana numa polémica que pôs os nova-iorquinos (quase sempre esquecidos perante a dimensão internacional do museu) contra a direcção do MoMA, presidida por Glenn David Lowry. Lowry acabaria por recuar e alterar o projecto de expansão. Foi o último grande ruído antes do bruá surgido a propósito de Björk.

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Os grandes visados são mais uma vez o MoMA e Klaus Biesenbach, nome cotadíssimo, mas também gente como Alex Ross, por exemplo, que assina um dos textos do catálogo onde compara o percurso da islandesa de Reiquejavique ao dos compositores Karlheinz Stockhausen ou Meredith Monk. Esse não é um ponto polémico. Polémico é o que essa afirmação sugere e deixa no ar. Se esse génio existe, argumentarão os mais cínicos, esta exposição deveria saber passá-lo e ela falha quando sugere uma pergunta imediata: a da intenção. O que pretendeu o MoMA com ela? Parece que em vez da artista o MoMA escolheu uma boneca sem densidade, estereotipada, sem nenhuma surpresa face ao que já sabemos dela. Björk no museu não é a Björk dos discos, do palco, dos ecrãs de cinema. É um produto acabado pronto a vender sem sugerir questões. Mas vender a quem? Os fãs mais insistentes, alvo preferencial desta exposição, facilmente se sentirão defraudados ao ver que estão apenas perante um desfile garrido de factos com algumas opções estéticas na fronteira do creepy, perdoem o termo inglês.

Voltamos a Alex Ross e a um artigo que assinou no Guardian em Fevereiro, a propósito do novo álbum. Contava ele que um dia numa entrevista lhe perguntou o que ouvia. A resposta foi esta: a 10ª Sinfonia de Mahler; Lulu, de Alban Berg; Tehillim, de Steve Reich. E também uma colectânea de música popular tailandesa, Alim Qasimov, Joni Mitchell, Kate Bush, Public Enemy, Aphex Twin, The Ranges, Black Dog Productions e o álbum de estreia de James Blake, James Blake. Ross destacava nesta lista o imenso mapa de géneros que servem de padrão ao mundo criativo de Björk. Mais uma vez, nada disto está no MoMA. Nem a participação de Björk no filme de Lars von Trier, Dancer in the Dark (2000), nem a banda sonora que assinou para ele. Nem o passado nos Sugarcubes, nem o que fez até lá chegar. São os álbuns a solo e os vídeos e os vestidos. Nada acerca das referências que a formaram. Apenas a história efabulada de uma menina protagonista de um conto de fadas da autoria do poeta islandês Sjón, narrada no iPad que é distribuído aos visitantes à entrada.

É o museu que sai beliscado e não Björk, que está a fazer coincidir a inauguração da retrospectiva com espectáculos em Nova Iorque, no Carnegie Hall (dia 14), no Kings Theatre, em Brooklyn (18 e 22) e no City Center (28 de Março e 4 de Abril). Depois do primeiro concerto, dia 7, escrevia-se que ela tinha redimido em palco a imagem deixada no museu, revelando-se numa intimidade devastada que o vídeo Black Lake, retirado de uma das canções de Vulnicura, encomenda do MoMA para a exposição, encena. Björk numa paisagem vulcânica, lava a escorrer-lhe do peito, num processo de reconstrução pessoal após o fim da relação de 13 anos com o artista plástico norte-americano Matthew Barney.

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Em entrevistas, ela descreve o disco como psicológico, fazendo um analogia com o cinema. A psicologia do cinema europeu versus a acção característica do cinema americano. O cliché serve para se posicionar. E serviu também a Andrew Thomas Huang para realizar o vídeo de dez minutos, insano sofrimento de ruptura amorosa, que é a peça central da exposição e que Biesenbach apresentou como retrato de uma autora “intransigentemente original”. É essa originalidade que não passa quando se percorre o museu e é difícil fugir ao eco, à frase de um dos críticos, Jason Farago, quando diz que há algo ali a remeter para as salas do Museu Madame Toussaud, e que talvez fosse conseguida – a sensação de que estamos num lugar inicial - se o espaço fosse outro, onde o vídeo e o som pudessem ser experimentados na escala gigante que o museu sugere mas que não pode satisfazer. O espaço não foi concebido para que seja só isso, para que uma retrospectiva se limite a ser um imenso videoclip sem edição. Talvez o PS1, a extensão do MoMA, em Queens, um imenso espaço dedicado à arte contemporânea e de que Biesenbach é também director.

Björk, a retrospectiva, vai estar no MoMA até 7 de Junho, mas está a ultrapassar as suas fronteiras pelas questões que coloca e que têm a ver com a frustração de expectativas. Como é que se está três anos a preparar uma exposição que no fim não aprofunda nada em relação à carreira de uma artista apresentada como visionária e capaz de derrubar fronteiras entre linguagens artísticas, alguém à frente do seu tempo? As 600 peças da exposição Bowie is são capazes de contar a história artística e da influência do seu protagonista. Os oitos álbuns de Björk, os vídeos, as roupas, os adereços de mais de 20 anos de carreira estão simplesmente “pendurados na parede”. E é aí que a questão deixa de ser Björk para se transformar no questionar de um modelo: o de como os grandes museus, ou a arte, colidem com uma realidade povoada de artefactos concebidos para massas. Björk, a retrospectiva, faz-se acompanhar por muitos produtos Björk no que é outra fronteira sensível quando falamos de um museu e referência: ser celebridade ou alguém capaz de fazer uma síntese inovadora de um momento. Björk talvez seja as duas coisas, mas no MoMA é a primeira que vende.

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