"Monsieur Jacques": Mandela agradeceu-lhe. O regime do apartheid também

Jean-Yves Ollivier cruzou fronteiras e aproximou inimigos numa região dilacerada pela guerra e pela tensão do apartheid. O seu segredo pode ter sido o de acreditar num diálogo que se pensava impossível. O documentário Plot for Peace dedica-lhe uma homenagem ao torná-lo, enfim, conhecido.

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Jean-Yves Ollivier, o “francês misterioso” Johnny Vaet Nordskog

Setembro de 1987. A pista do aeroporto internacional de Maputo é palco de uma inédita troca de prisioneiros na região mais a sul de África. O acordo que, no contexto da Guerra Fria e do isolamento crescente do regime do apartheid, se julgaria impossível culmina meses de negociações secretas entre países em guerra ou em ruptura total. Cuba e Estados Unidos, que também aqui disputam a sua influência, aceitam entrar no jogo.

Nos bastidores está um homem discreto. Muito poucos saberiam dizer quem ele é, nos meses e anos que se seguem. Porém, esta operação bem-sucedida poderia ter o seu nome: Jean-Yves Ollivier – ou “Monsieur Jacques”, como era conhecido este empresário francês nos canais diplomáticos dos países do Sul de África e na ligação entre estes e a França.

Jean-Yves Ollivier, 70 anos, só agora levanta o véu e se revela, no filme Plot for Peace (Complot para a Paz), de que é figura central. O documentário de 2013, co-realizado pelo espanhol Carlos Agulló e pela sul-africana Mandy Jacobson, que também é a produtora, correu festivais de cinema internacionais, onde venceu vários prémios – Palm Springs, São Paulo e Galway Film Leadh – e recebeu distinções e nomeações em muitos outros.

Ele próprio, no documentário, diz agir por conta própria, recusa a ideia de alguma vez ter sido um “enviado do poder” (de França ou de outro país) e desmente quem diz que ele é um “espião”. Em entrevistas recentes, garante que nunca na vida comprou ou vendeu armas, que os seus negócios começaram nos cereais em África e passaram depois para o petróleo. Aceitou fazer este filme seis meses depois de a co-realizadora bater pela primeira vez à sua porta.

“Ele quis deixar uma obra”, reflecte o historiador norte-americano Michael Ledeen, no documentário. Ledeen fala na qualidade de ex-conselheiro do Conselho para a Segurança Nacional dos EUA, sobre o empenho de Jean-Yves Ollivier em estabelecer pontes, talvez inspirado pela ideia de que “África é um sítio onde uma só pessoa pode fazer a diferença”.  

“Ele era um agente livre, e isso dava-lhe a liberdade de se movimentar entre as partes e desenvolver uma diplomacia paralela”, afirma Mandy Jacobson ao PÚBLICO. A co-realizadora e directora da Africa Oral History Archive, uma produtora sul-africana que regista testemunhos e entrevistas com os protagonistas da História, descobriu Jean-Yves Ollivier quando percorria horas de material de arquivo. Situou-o no mapa e no contexto histórico, vasculhou referências em livros da época e percebeu a estatura da figura quando descobriu que Ollivier continha nele a proeza – e aparente contradição – de juntar opostos até no reconhecimento do que fez pela paz na região.

O “francês misterioso”, como chegou a ser referido, foi a única personalidade condecorada pelo regime do apartheid (em 1987), e por Nelson Mandela (em 1995) depois de eleito Presidente da nova África do Sul.

Fevereiro de 1990. Mandela é libertado. E durante algum tempo, até para o herói da luta anti-apartheid, Monsieur Jacques não existia. “Ollivier nunca disse uma única palavra sobre o seu contributo”, lembra agora Winnie Mandela, a então mulher de Mandela e activista do Congresso Nacional Africano (ANC), em Plot for Peace. “Jean-Yves Ollivier só recebeu uma medalha de Mandela porque reconhecemos o que fez pela nossa luta”, acrescenta o destacado dirigente do ANC, Mathews Phosa.

Tudo começou na noite de Setembro de 1987. No aeroporto de Maputo, criou uma zona livre, uma “terra de ninguém”, e comandou na sombra, desenhando num pedaço de papel, momentos antes da chegada de vários aviões com os presos (que iam ser libertados), a disposição que estes deveriam ter na pista.

Também impôs condições. Como esta: o capitão Wynand du Toit, comando das forças especiais da África do Sul, cativo em Angola desde 1985 (depois da missão falhada de fazer explodir bases de petróleo em Cabinda), e os 133 prisioneiros de guerra – angolanos e namibianos independentistas da SWAPO – tinham de ser libertados ao mesmo tempo. Só assim poderiam “os seus olhares cruzar-se”, quando caminhassem, em sentidos opostos, na pista.

As imagens desse momento ficam como um poderoso símbolo de que os muros da Guerra Fria podiam não ser totalmente intransponíveis.

Fevereiro de 1986. Num discurso na Assembleia em Pretória, o Presidente P.W. Botha sugerira que a libertação de Wynand du Toit (e de dois dissidentes soviéticos também cativos em Angola) poderia abrir a via para uma libertação de Nelson Mandela. A hipótese, mesmo que remota, mexia com os interesses angolanos na guerra. E Jean-Yves Ollivier incluiu no jogo o Presidente José Eduardo dos Santos e Jonas Savimbi, líder de uma UNITA, aqui descrita, pelo general sul-africano Neels van Tonder, como “uma quase extensão das forças sul-africanas”.

"Monsieur Jacques" vai às “terras do fim do mundo” onde Savimbi ergueu o seu bastião, na Jamba, pedir “um acto político gratuito” – a libertação de mais de cem prisioneiros de guerra – sem nada para oferecer em troca.

Para a reunião em Luanda com o Presidente Eduardo dos Santos, é Joaquim Chissano quem estabelece o contacto. O ministro dos Negócios Estrangeiros moçambicano, que nesse ano da morte de Samora Machel assume a presidência do país, ainda hoje é amigo pessoal de Jean-Yves Ollivier.

Em França, país neutro, Jacques Chirac, primeiro-ministro francês do então Presidente, François Mitterrand, recebe Savimbi e Eduardo dos Santos. Mas perante a forte pressão da opinião pública, recua na opção de um encontro oficial com o Presidente P. W. Botha, como queria Jean-Yves Ollivier para pôr o plano em marcha.

O Presidente Sassou-Nguesso, do Congo-Brazzaville, “o marxista que não quer desafiar os EUA”, entra então em cena. Apoiante da luta do ANC contra o apartheid, aceita encontrar-se com uma delegação da África do Sul – apesar da total oposição ao regime do apartheid. Esse gesto traz esperança, primeiro para a troca dos prisioneiros de guerra, e depois para os outros vários acordos que seguem até Nova Iorque.

Dezembro de 1988. Na sede das Nações Unidas em Nova Iorque, os acordos da independência da Namíbia e da retirada de Angola das tropas de Cuba e da África do Sul são selados na presença de todas as partes, sob mediação de Washington.

Mathews Phosa, destacado activista do ANC, testemunha: “Foi muito importante para nós e para o país, para a região e para o mundo. Criou um efeito de dominó.” Para trás, ficam meses de conversações em reuniões que, nas palavras de Ollivier, “não podiam fazer a primeira página dos jornais”. Um exemplo: o “extraordinário encontro” na mansão do ministro dos Negócios Estrangeiros da África do Sul Pik Botha, no deserto do Kalahari (que cobre uma grande parte do Botswana e algumas partes da Namíbia e da África do Sul), e, no qual, o convívio entre inimigos resulta num “pacto de apoio” que passa a associar a retirada dos cubanos de Angola à desocupação sul-africana da Namíbia.  

Os cubanos aceitam sentar-se à mesa das negociações com sul-africanos e angolanos, na presença dos americanos. Chester Crocker, secretário de Estado adjunto do então Presidente Ronald Reagan, tenciona aparecer como o homem que deu uma vitória aos Estados Unidos em África durante a Guerra Fria. E para Fidel, Angola e Sul de África eram a prioridade "número um" na política externa e ele estava decidido a não a falhar. Estavam criadas as condições para um decisivo encontro no Cairo, com todos os intervenientes, em Maio de 1988, numa altura em que crescia a contestação – também interna ao Partido Nacional na África do Sul – ao regime liderado pelo Presidente P.W. Botha (sem nenhuma ligação familiar ao ministro dos Negócios Estrangeiros Pik Botha).

Fevereiro de 1989. P. W. Botha apresenta a demissão. A 2 de Fevereiro de 1990, o recém-empossado Presidente sul-africano, Frederik De Klerk, anuncia no Parlamento a decisão de libertar sem condições Nelson Mandela, preso durante 27 anos. Meses antes, quando já era Presidente, deixara registadas estas palavras: “Temos de arranjar uma forma de vivermos juntos e em paz.”

O herói da luta anti-apartheid sai em liberdade no dia 11 de Fevereiro de 1990, graças ao desgaste do regime de Pretória e ao diálogo secreto encetado com representantes do Governo, quando ainda estava na prisão. Mas também porque a paz regional tinha criado condições para a sua libertação. E isso devia-se em grande parte ao que fez “o misterioso empresário francês” atraído por seres e países “pouco convencionais”.

Plot for Peace chegou recentemente às salas de cinema no Reino Unido, depois de se ter estreado em França e nos Estados Unidos no ano passado, de estar a caminho do Japão e à espera de saber a data de estreia na África do Sul.

O impacto será aqui sentido de forma especial, já que Plot for Peace conta uma história verdadeira e recupera imagens de arquivo – algumas talvez nunca vistas – a relembrar a brutalidade da polícia do apartheid, contra negros e brancos que se manifestavam a favor dos negros – mas, também, a revelar os gestos desconhecidos de líderes que aceitaram quebrar o tabu e falar com “o outro lado”.

Também será curioso ver o impacto e a revelação que representará para os “born free”, a geração nascida depois do fim do apartheid, diz Mandy Jacobson por telefone, que ficarão assim a conhecer uma página da História do país, mas também “um capítulo muito especial” que influenciou os acontecimentos em toda a região. “Muitas pessoas não perceberam bem a influência da Guerra Fria na nossa região”, acrescenta. E conclui: “Estes filmes não são feitos para dizer ‘esta é a verdade da História’, mas sim para lançar o que acredito ser um diálogo com a História.”

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