Mediterrâneo: a guerra a não fazer!

Uma operação militar contra os passadores, como pensada pelo Conselho Europeu de 23 de Abril, pode ser um desastre político, estratégico e humanitário mas, acima de tudo, uma falta ética, uma incoerência relativamente aos valores da União. A Alta Representante da União para a Política Externa e a Segurança devia apresentar um plano alternativo, que combine uma operação de salvamento no alto mar com uma estratégia que poderá ter uma componente militar para lidar com a crise líbia e com a guerra na Síria, as razões primordiais da tragédia mediterrânea.

Em Abril de 2015 a Europa e o mundo acordaram para a tragédia humanitária do Mediterrâneo, com a morte de 800 pessoas. Nos 5 primeiros meses de 2015 morreram 1800 pessoas com os olhos postos na Europa.

Grande parte dos que atravessam o Mediterrâneo, usando as rotas da emigração, fogem às guerras que varrem os estados falhados do Médio Oriente, nomeadamente da Síria, do Iraque e da Líbia. Este fenómeno é bem conhecido de muitos portugueses que nos anos 60 e 70 fugiram à pobreza e às guerras coloniais dando o “salto” para a Europa – só para França, um milhão, também com intervenção de passadores.

Segundo as Nações Unidas, tanto em 2014 como nos primeiros meses deste ano, a maioria dos que tentaram atravessar o Mediterrâneo é de origem síria. São sírios que fogem à repressão da ditadura ou dos bombardeamentos, sejam de forças do regime ou de grupos armados que conduzem uma guerra sectária, como o ISIS. A seguir aos sírios, o maior contingente dos que tentam chegar à Europa são afegãos, eritreus e somalis – ou seja, indivíduos originários de países em conflito.

São homens e mulheres que correm riscos sérios caso regressem aos seus países de origem e têm direito a refúgio ou, pelo menos, protecção, ao abrigo da Convenções que os estados da União Europeia subscreveram. Legalmente, todos têm direito a que os seus pedidos sejam examinados; humanitariamente, todos têm o direito de ver a sua vida protegida.

Os refugiados sírios concentram-se maioritariamente nos países vizinhos. Há quatro milhões de refugiados registados no Líbano, na Turquia, na Jordânia e no Iraque. Só o Líbano (com 4,2 milhões de habitantes) tinha 1,2 milhões de refugiados registados; na Turquia, 1,7 milhões. Em contraste, os 28 Estados membros da União Europeia registaram apenas 234.879, entre Abril de 2011 e Março de 2015, pedidos de asilo de refugiados sírios, 56% na Alemanha e na Suécia e têm oferecido enorme resistência perante os apelos de António Guterres para que recebam mais refugiados. A Comissão Europeia propôs que os estados da União recebam 40 mil refugiados, apesar de ser um número insignificante para uma população europeia de mais de 500 milhões de pessoas, tal proposta encontra muita resistência. Há vozes na União Europeia, como a da Alta Representante, que têm afirmado que os Estados europeus fazem muito pouco.

Mas ainda mais grave, a operação Mare Nostrum – operação marítima italiana que em 2014 salvou 100 mil pessoas em alto mar, perto da costa líbia – foi substituída, em Novembro de 2014, pela operação Triton de protecção das costas europeias, considerando, então, alguns que salvar pessoas no alto mar era um incentivo à travessia.

Na base desta falta de solidariedade dos estados da União está a crescente influência de correntes políticas populistas e identitárias que afirmam que os refugiados e imigrantes são uma ameaça à segurança, ao emprego e à identidade da União Europeia, particularmente se são muçulmanos. Banalizou-se a islamofobia e dirigentes de grandes partidos democráticos deixaram contaminar o seu discurso por essa retórica anti-imigração, numa amálgama onde se misturam emigrantes e refugiados com terroristas, as ameaças ao emprego com a liberdade de circulação de Schengen.

A decisão do Conselho Europeu de 23 de Abril de lançar uma operação militar para travar o fluxo de refugiados e emigrantes que querem atingir a UE é também estrategicamente arriscada e perigosa. Certo é que não é assim que se trava o fluxo - os passadores não são a causa da vaga de refugiados ou imigrantes; na ausência de meios legais, são um meio para chegar à Europa.

A concretizar-se, a intervenção não só não lida com os problemas que provocam o fluxo de refugiados como, ao intervir militarmente na Líbia, para destruir os barcos dos passadores, pode agravar a situação de guerra civil e acabar por ser um alvo para as milícias líbias, acrescentando uma nova dimensão aos conflitos já existentes.

Um outro caminho é possível, que passa pelo desenho de uma estratégia para lidar com a crise humanitária na Síria e com a guerra civil na Líbia e pela criação de canais legais para que os refugiados cheguem à Europa sem arriscarem as suas vidas. Na Síria, isso significa disponibilizar-se para assumir o núcleo duro de uma operação de paz, em coligação com países árabes, o Brasil e a India. Essa operação pode vir a ser necessária mais cedo do que muitos esperam. O regime de Assad vê hoje Damasco ameaçada e pode ser obrigado a fazer um acordo. Esta força deve ter um mandato robusto, de imposição de paz, pois pode enfrentar beligerantes (como o ISIS) que não aceitam um acordo de paz. Na Líbia, a União tem que estar preparada para apoiar o acordo de paz que saia das negociações lideradas pelas Nações Unidas.

Distraídos com a crise económica, os europeístas não se têm dado conta que uma ameaça muito mais grave pesa sobre o projecto europeu: a perda dos valores basilares da integração europeia. E sem a defesa desses valores a União não pode sobreviver.

Cabe aos partidos democráticos dos Estados membros da União, num sobressalto ético, explicar aos cidadãos que os populistas não têm razão, que os refugiados e os imigrantes não são uma ameaça e que é dever da Europa ser terra de asilo.

Investigador convidado, Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo

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