Grécia, em verdade te digo: não estarás hoje connosco no paraíso…

O federalismo é a única solução constitucional que pode proteger adequadamente os Estados pequenos, médios ou débeis

1. Uma nota aparentemente circunstancial – mas bem mais funda do que isso – para dizer que a maratona de encontros, desencontros, pausas e interrupções das reuniões do Eurogrupo e do Conselho Europeu suscita uma séria apreensão.

A constante amplificação de rumores, as informações confidenciais que pululam pelos telemóveis de quem vive nos corredores de Bruxelas, todo o ambiente que transpirava e exsudava da parafernália mediática mostravam bem que se estava a violar a regra essencial à convivência europeia – de que tantas vezes aqui falei – “não humilharás”. Sou totalmente insuspeito de qualquer simpatia pelo Syriza. Escrevi já uma dúzia de vezes que ele não é solução, antes consubstancia um problema; que não se trata de um parceiro fiável e que tem um projecto político nos antípodas do que são os desígnios demo-liberais da Europa e do Ocidente. Disse dezenas de vezes que o seu radicalismo é também um produto da inabilidade da União e, em especial, dos seus cada vez mais poderosos governos nacionais. Radicalismo esse que corre o risco de alastrar, por imitação, ao sul e, por reacção a contrario, ao norte. Mas o modo como o Estado grego e os seus dignitários e representantes apareceram tratados e retratados não foi propriamente digno do estatuto que lhes é devido. E isso é inaceitável, por mais arrogantes e até exóticas que fossem as suas pretensões – e, desta feita, mesmo que não pudessem (e não podiam nem deviam) ser acolhidas, já não eram da ordem do delirante.

2. Segundo, também me custa ver o cortejo – especialmente nacional – de comentadores e protagonistas que rejubilavam com um putativo regresso da Grécia à velha e plena soberania. Essa procissão de analistas, que tem a soberania mais na boca do que o credo, ainda não percebeu que, no mundo globalizado e desterritorializado do século XXI, não pode regressar-se à ilusória soberania estatal e nacional do século XIX. Mesmo que a Grécia volvesse ao dracma e, depois de um período de gravíssimas dificuldades, viesse a prosperar, nunca voltaria a essa mítica idade do ouro das soberanias nacionais – tais como as sonharam políticos e ideólogos do século XIX e XX. A falta de compreensão de que vivemos num mundo de democracias pós-territoriais em que, por mais que se faça e por mais que se puxe pela “devolução de poderes”, seja à inglesa, seja à PCP, é verdadeiramente dramática. A que soberania poderia voltar uma Grécia: à da Venezuela de Maduro, à de Cuba de Fidel, à do Zimbabwe de Mugabe ou à da dinastia norte-coreana? Não cairia rapidamente numa espécie de vassalo russo, de entreposto chinês ou, vá lá, de “tele-Porto Rico”? Ou alguém acha que se juntaria à Suíça e à Noruega e aderiria ao Tratado do Porto?

É bem verdadeira a crítica vinda desses sectores de que o Tratado de Lisboa, apesar de progressos importantes, foi um grande estimulante do directório e até da unipolaridade alemã. Disse-o na altura, volto a dizê-lo e a experiência destes cinco anos comprova-o amplamente. Por isso, regressando aos clássicos, tenho insistido em que a constituição europeia – enquanto constituição não estatal, reguladora de complexas relações entre Estados e povos – é uma constituição mais aristocrática do que democrática. Claro que, e seguindo a velha lição de Aristóteles e na esteira da tradição política britânica – cuja constituição tanto se assemelha ou assemelhava à europeia –, enquanto a aristocracia não degenerar em oligarquia pode ainda qualificar-se como um regime “virtuoso”. Virtuoso, porque orientado para o bem comum, o que quereria aqui dizer, em termos modernos e muito decalcados do tal trilho britânico, que segue a rule of law e, por conseguinte, ainda que preservando assimetrias e diferenças, respeita e faz respeitar a dignidade de cada qual (povo, estado, pessoa).

São muitos os que continuam sem perceber que o novo mundo das tecnologias nos tirou o chão do território como categoria absolutamente imprescindível do poder, que a mobilidade crescente e a migração incontrolável nos farão repensar todas as vinculações e sentimentos de pertença às comunidades políticas, que as instituições vestefalianas do século XVII e revolucionárias do século XVIII já não têm préstimo para fazer a governança (como agora se diz) das novas sociedades poliárquicas. Sonham, cada um à sua maneira com um novo PREC, que nos fará regressar à velha ordem das soberanias e até das hierarquias estatais e imperiais. Mas, na mais optimista e benigna das hipóteses, desse activismo saudosista, só poderia vir a ilusão de Colombo, que – como disse Althusser, a propósito de Montesquieu –, descobriu a América, julgando que aportava na Índia, descobriu o futuro, quando desejava ter regressado ao passado (medieval). Não creio, porém, que estes encarniçados soberanistas – que persistem em não percepcionar a profunda alteração da natureza constitucional dos Estados (das comunidades políticas estatais) – mesmo por acaso e sem intenção, descubram ou, ao menos, descortinem qualquer modo político-constitucional futuro e com futuro. Não creio mesmo.

3. No terreno da pura política, o que a crise grega acaba de demonstrar, por entre a hegemonia alemã, a hipertrofia de referendos nacionais avulsos, a submissão à vontade conjuntural de todo e qualquer parlamento nacional que a essa prerrogativa se arrogue, é que nos falta um quadro constitucional federal. Ao contrário do que os detractores do europeísmo sempre fizeram crer, o federalismo é a única solução constitucional que pode proteger adequadamente os Estados pequenos, médios ou débeis e que pode proporcionar um quadro político genuinamente democrático ao nível da União. Uma clara repartição de competências entre o nível estadual e o nível federal e uma maior equidade nas instâncias representativas dos Estados (ainda que temperada por maior proporcionalidade na câmara dos povos) só pode beneficiar os Estados mais fracos e o interesse geral europeu no seu todo.

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