E nós? Teremos sempre Paris?

"Ontem, era suposto ser apenas outra sexta-feira. Eu estava atrasado para a festa de aniversário de um dos meus melhores amigos na La Belle Équipe. Estava atrasado. Depois a minha mãe ligou-me e, provavelmente, salvou a minha vida. Depois soube que havia um forte tiroteio. Não dormi, mas hoje soube que todos os meus amigos lá foram mortos. Sem qualquer razão."

Demorei alguns dias a decidir se partilhava ou não a frase que surgiu no meu newsfeed do Facebook. Decidi fazê-lo, anonimizando quem a escreveu, pois acho que mais importante do que quem foi o seu autor é a forma como chegou até mim e o sentimento que induz.

Ao olhar o newsfeed do meu Facebook observo a profusão da bandeira francesa como fundo nos perfis, vejo aqueles que atacam a vinda dos refugiados sírios para a Europa e os que a defendem, os que partilham artigos de jornais explicando o que é o Daesh, os que fazem análises sobre que posições devem tomar os governos ou os que dizem que há Paris, mas que também há morte em atentados no Líbano, Nigéria, na Síria, no Iraque, etc.

Todas essas formas de lidar com o sucedido têm paralelo nas reacções face a outros momentos como o 11 de Setembro de 2001, os atentados em Madrid em 2004 ou mesmo nos múltiplos atentados em Paris ao longo das décadas de 1970 e 1980 e ligados às crises do Médio Oriente.

Então o que há de verdadeiramente diferente na forma como lidámos com estes ataques? A resposta é a forma como construímos a ligação entre nós e as vítimas.

A televisão, os jornais e a rádio sempre procuraram estabelecer uma relação mais directa entre nós e os eventos através da tradicional pergunta: "Há portugueses envolvidos?" E das respostas: "Até agora não há notícias de portugueses entre as vítimas." Ou: "Sabemos que há pelo menos um português entre as vítimas."

No entanto, desta vez essa ligação, que era função da televisão, jornais e rádio, parece agora algo desprovida de sentido, pelo menos para os cerca de cinco milhões de portugueses que utilizam o Facebook.

Poucos segundos depois de se terem iniciado os ataques havia já quem, no Facebook e no Twitter, relatasse os eventos em curso, pedisse ajuda, porque estava escondido dentro do Bataclan, tranquilizasse os mais próximos ou perguntasse se alguém sabia se o amigo ou amiga estavam a salvo.

Numa segunda fase foram as próprias empresas, nomeadamente o Facebook, a colocar em acção o seu safety check permitindo dizer aos amigos que se está a salvo numa dada catástrofe, neste caso, um ataque terrorista em Paris.

Nos ataques ocorridos em Paris construímos a nossa ligação às vítimas tal como vivemos o nosso quotidiano, ou seja, através da mediação das redes sociais construídas por via das partilhas de alguém que as conhecia, de alguém que conhecia alguém que era amigo de quem morreu nos ataques ou de quem neles ficou ferido. 

Mas será que essa "nova proximidade" é assim tão importante ao ponto de aqui ser destacada? Sim, porque é sempre a existência de proximidade que mobiliza a atenção da opinião pública para um assunto e, por sua vez, é essa mobilização que influi e condiciona também as tomadas de decisão por parte dos nossos governos.

É por essa razão que a proximidade precisa de ser temperada e é também por isso que recorrer às análises de Michel Wieviorka constitui um bom antídoto face ao impulso de basear a nossa opinião exclusivamente nos sentimentos gerados pela proximidade face aos acontecimentos de Paris.

Reler o livro Evil de Wieviorka relembra-nos que, se queremos continuar a viver em sociedades abertas e democráticas, num mundo onde cada um de nós pode construir a sua própria experiência e orientar a sua vida pelo respeito e solidariedade para com os outros, temos primeiro de compreender os processos que nos podem levar por caminhos que, embora totalmente opostos, têm em comum a negação do individual, da moral e da integridade física.

Por sua vez, compreender esses processos implica assumir que o terrorismo global, o racismo, o ódio generalizado pelo “outro” são construídos social, política e culturalmente e que, para os combater, é tão importante saber quais são as suas raízes e fazer luz sobre os seus processos de construção quanto é possuir os meios militares, policiais e de vigilância das redes.

Teremos de combater com armas o Estado Islâmico na Síria e na Europa, mas, tal como nas anteriores guerras, sejam elas as do Golfo, do Iraque, do Afeganistão, ou até a Segunda Guerra Mundial, só se pode ganhar se se souber antecipadamente o que se quer fazer depois de as ganhar.

E o ganhar só será verdadeiramente uma vitória se ganharmos também as mentes dos que hoje escolhem destruir o nosso modo de vida democrático, estejam eles nas fileiras do extremismo radical islâmico ou do extremismo político europeu.

Em Novembro de 1942 o filme Casablanca estreou-se e pela primeira vez ouvimos "Teremos sempre Paris", a frase que Humphrey Bogart profere em resposta à pergunta "E nós?" feita por Ingrid Bergman.

A pergunta repete-se agora em Novembro de 2015 e podemos continuar a imaginar que a resposta seja "Teremos sempre Paris", mas já o que será "Paris" dependerá das escolhas que nas próximas semanas soubermos fazer.

Professor do ISCTE-IUL, em Lisboa, e investigador do College d'Études Mondiales na FMSH, em Paris

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