Tribunal obriga Fundo de Garantia Salarial a pagar dívidas de empresa em recuperação

Interpretação das regras do Fundo de Garantia Salarial está a ser dirimida nos tribunais. Administradores de insolvência receiam que recusas levem trabalhadores a rejeitar recuperação de empresas.

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Custos da Segurança Social, tutelada por Pedro Mota Soares, subiram 16% nos primeiros seis meses deste ano Enric Vives-Rubio

O Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Almada deu razão a um trabalhador da Novopca, empresa declarada insolvente e que iniciou um plano de recuperação, obrigando o Fundo de Garantia Salarial (FGS) a pagar-lhe os créditos laborais em falta. Na sentença, a primeira dos vários casos que chegaram à justiça, o tribunal entende que o importante é a “insolvência ser reconhecida pelos tribunais, quer implique liquidação ou recuperação”.

A sentença surge numa altura em que os sindicatos têm vindo a denunciar que a gestão do FGS se recusa a pagar salários e outros créditos a trabalhadores de empresas que têm planos de recuperação a correr nos tribunais – seja ao abrigo dos processos de insolvência ou do Processo Especial de Revitalização (PER), criado em 2012 como alternativa às falências judiciais. Os administradores de insolvências, que acompanham estes processos, temem que estes indeferimentos levem os trabalhadores a votar contra a recuperação das empresas e aumentem as falências.

Na sentença a que o PÚBLICO teve acesso, o tribunal vai mais longe e alertar que a interpretação dos serviços torna “potencialmente inútil” o objectivo do fundo, criado para pagar as dívidas aos funcionários quando as empresas estão em dificuldades financeiras ou encerram portas. Os argumentos do TAF de Almada não foram contestados pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, responsável pela gestão do fundo, que optou por não recorrer da decisão.

Em causa, está um trabalhador da construtora Novopca, declarada insolvente em Maio de 2011 e que posteriormente foi alvo de um plano de recuperação homologado em Janeiro de 2012. O trabalhador apresentou, em Julho de 2011, um requerimento ao FGS para receber salários em atraso e a indemnização por despedimento. A resposta chegou em Dezembro desse ano: o pedido era indeferido porque “os créditos requeridos ao FGS serão extintos por força da homologação do plano de recuperação da empresa”.

O TAF de Almada lembra que a protecção dos créditos dos trabalhadores em caso de insolvência é uma obrigação do Estado por via de uma directiva europeia de 2008. E alerta que o recurso ao FGS “não poderá ficar refém das decisões dos credores das sociedades insolventes”.

E alerta que, no caso em análise, a empresa ainda não pagou aos trabalhadores e que, mesmo que isso tivesse acontecido, o FGS ter-se-ia limitado a adiantar parte dos créditos, tornando-se credor da empresa. Se o entendimento do gestor do fundo, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, fosse adoptado, acrescenta “os trabalhadores poderiam ficar irremediavelmente penalizados e desprotegidos”, pois se o FGS “se afastasse perante a mera promessa de pagamento, consubstanciado num qualquer plano de insolvência, tal tornaria inútil o regime instituído”.

A situação financeira da Novopca veio a confirmar, aliás, que o facto de haver um plano de pagamentos aprovado não significa que a situação dos trabalhadores fique salvaguardada. O plano não foi cumprido e os credores requereram um PER para a empresa, que o tribunal decidiu recentemente não homologar.

O TAF entende que depois de declarada judicialmente a insolvência de uma empresa, o FGS “deverá decidir em 30 dias após o requerimento do trabalhador, independentemente de em momento ulterior vir a ser aprovado qualquer plano de insolvência”. Esta decisão dá algum alento aos restantes dez trabalhadores da empresa que também entraram com acções contra o fundo e poderá vir a ajudar a esclarecer o entendimento que os serviços e o próprio Ministério do Emprego têm destas situações.

Jorge Estima, advogado que tem alguns desses processos em mãos, lembra que  o FGS” nunca distinguiu entre os processos com plano de insolvência e os que declararam falência”, acrescentando que, nos processos mediados pelo Iapmei, o FGS também paga os créditos aos trabalhadores. Trata-se de um paradoxo, visto que nestes últimos processos também é acordado um plano de pagamentos com os credores, embora por via extrajudicial.

A cerâmica Valadares, declarada insolvente em 2012, é outro caso que está a dividir os trabalhadores e o FGS. O atraso nas respostas do fundo aos 318 requerimentos foi o tema de uma pergunta formal enviada pelo PCP ao Ministério do Emprego em Abril de 2014. A resposta chegou no início de Julho. O chefe de gabinete do ministro Pedro Mota Soares comprometia-se a exigir mais celeridade aos serviços. Contudo, justificava os atrasos com um argumento muito semelhante aos que o fundo usou para a Novopca. Como no âmbito do plano de insolvência homologado “se perspectiva” o pagamento de todos os créditos, tal “determinaria a improcedência dos pedidos”. Por isso, lê-se no ofício, “entendeu-se não priorizar a análise dos requerimentos”.

Por outras palavras, como a empresa tem um plano de recuperação, o FGS não pagaria os créditos e por isso os serviços não deram prioridade à análise dos requerimentos destes trabalhadores. O gabinete de Mota Soares não toma uma decisão taxativa, mas entende que quando há planos de insolvência, o FGS não deve dar prioridade aos pedidos. Contactado pelo PÚBLICO, o administrador de insolvência da Valadares desconhece estes problemas. 

Vazio legal incentiva falências
Os casos não ficam por aqui. O FGS tem também recusado pedidos de trabalhadores de empresa em dificuldades, que ainda não declaram insolvência e recorreram ao PER. No processo de um ex-trabalhador de uma construtura de Braga, a J. Gomes SA, a que o PÚBLICO teve acesso, os serviços decidiram que não poderia accionar o fundo.

No despacho com data de 27 de Junho, a recusa tem como fundamento não ter sido declarada a insolvência da empresa, despacho de acção de recuperação ou declaração de falência. E acrescenta-se que “o actual regime jurídico do FGS não abrange situações em que as empresas se encontram em PER”, pelo que os créditos não podem ser assegurados “por falta de enquadramento legal”.

Emanuel Carvalho, advogado que está a acompanhar alguns destes trabalhadores, entende que, embora o regulamento do FGS nada diga sobre os PER, há formas de contornar o “vazio legal”. O Código do Trabalho, alerta, “diz que o fundo destina-se a empresas em insolvência ou situação económica difícil. Uma empresa em PER está em situação económica difícil”, resume.

A mesma situação aconteceu na Cinclus, uma empresa de engenharia de Vila Nova de Gaia, que requereu um PER no ano passado. Luís Gomes, administrador de insolvência que acompanhou este processo, referiu ao PÚBLICO que alguns trabalhadores também viram o pedido de acesso ao FGS indeferido quando o plano de recuperação foi aprovado pelos credores.

O presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Judiciais (APAJ), Inácio Peres, receia que este vazio e a interpretação da legislação tenham um “efeito perverso” e incentive a falência das empresas. “Os trabalhadores podem sentir-se pressionados a votar contra a recuperação”, alerta, garantindo que estão disponíveis para sugerir eventuais alterações legislativas.

Na semana passada, o secretário de Estado da Segurança Social, Agostinho Branquinho, disponibilizou-se, junto dos parceiros sociais, a analisar o assunto. Com Raquel Almeida Correia

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