O short selling do pernil

Não pode mesmo dar certo o desenvolvimento sustentável num mundo onde cintila esta pérola do capitalismo selvagem: o short selling. Em português diz-se “venda a descoberto”, noção até há pouco em falta na modesta biblioteca de conhecimentos financeiros que se aloja num canto do meu cérebro.

Foi a crise na Portugal Telecom, que patrioticamente chamamos de PT, que preencheu essa lacuna do meu saber. Vinha acompanhando com curiosidade a derrocada da empresa, que vendeu o que lhe dava dinheiro e emprestou as economias que restavam a quem não podia pagar, sem que ninguém tenha sido preso por isso.

As acções caíram a pique, transformando um título que inspirava um certo orgulho bolsista a quem o detinha numa batata quente a passar adiante na primeira oportunidade.

Num momento de particular “pressão vendedora”, como se diz em bom economês, os valores bateram tão fundo que pelo preço de um café qualquer um tornava-se accionista da PT. Há um ano, era preciso investir um almoço.

Foi nesse dia, quando 55 milhões de destroços da empresa mudaram de mãos, que ouvi pela primeira vez o termo.

Encaro a ignorância com grande felicidade. Há quem dela se envergonhe, sem se dar conta de que é o ponto de partida para se aprender algo novo. Saí, por isto, em busca do real significado de short selling, desde logo desconfiado de que o binómio vocabular encerrava alguma maldade.

Em termos sucintos, vender a descoberto significa alinear algo que não se tem. Funciona assim: a bolsa de valores está em queda e eu, que não tenho uma única acção de uma determinada empresa, peço emprestado um montão delas a um broker ­– tubarão, na língua de Camões. Sem surpresa, a benevolência do emprestador é assegurada pelo pagamento de uma compensação. Mas isto não importa, pois o melhor vem depois.

Imaginando que o mercado vai cair ainda mais, vendo imediatamente as acções que não são minhas a algum coitado que, se os meus planos funcionarem, vai perder dinheiro. Ele que se amanhe, o que vale é o sucesso do meu negócio.

Deixo passar algum tempo, divertindo-me a assistir ao pânico generalizado que a venda em massa está causar, porque certamente não serei só eu a adoptar a estratégia. Os preços tombam e quando estão suficientemente baixos, compro o mesmo número de acções por um valor inferior ao que vendi, devolvo-as todas a quem as concedera por empréstimo e fico com o lucro.

Maravilhado e estarrecido ao mesmo tempo, fiquei instruído quanto à genialidade das vendas a descoberto. Nas palavras de um site especializado em educar os financeiramente ignaros, “sem o short selling poderá ser muito difícil fazer dinheiro num mercado em queda”. Sem complexos e até com uma certa candura, esta declaração pressupõe um axioma fundamental do capitalismo, o de que em qualquer circunstância é legítimo lucrar. Como corolário, vender algo que não se possui, prática comum entre larápios, impostores e vigaristas, transforma-se assim num negócio lícito, proveitoso e admirável.

Animado, tentei praticar o conceito durante um almoço, propondo a venda de um suculento pernil que um colega ao meu lado se preparava para trinchar. “Queres comprar?”, propus a um terceiro comensal, do outro lado da mesa, embora o prato não me pertencesse. Estavam reunidas todas as condições para o sucesso do primeiro short selling de um cozinhado. Eu venderia o pernil inteiro e recompraria o osso por um décimo do preço, devolvendo-o ao dono original. Não sei por quê, mas ninguém aceitou.

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