Esgravatar no lixo

De certa forma, compreendo a tua repulsa de estrangeirado, Tito. Por cá, continuamos incapazes de gerar ódios, mas somos bons fadistas da adversidade.

Salgado requereu o Rendimento Social de Inserção!, gritou-me Tito Zagalo, ainda do outro lado da rua. Não brinques com coisas sérias, Tito! Está já nas redes sociais!

O benefício de combate à pobreza e à exclusão social ajusta-se-lhe perfeitamente: não dispõe de qualquer património em Portugal e a família e os amigos abandonaram-no ostensivamente. Cumpre todos os requisitos: reside aqui, tem mais de 18 anos, pode fazer prova de carência económica, obriga-se a um programa de inserção. Só lhe falta estar inscrito num centro de emprego. Consta que só não o fez ainda, por razões de segurança física.

Não brinques, Tito, a queda de Salgado é o desabar de um pouco do país. Além do mais, não quero falar do BES, toda a gente fala. Teria que fazer ataques pessoais a Salgado e Granadeiro, o que recuso. Teria que alertar para a imensa ignorância técnica de tantos especialistas que vão à televisão falar de coisas que desconhecem. Teria que desmentir políticos que insistem em proclamar que não houve qualquer intervenção financeira que responsabilize o Estado. Teria que desprezar outros que cedem informação altamente confidencial aos amigos para demonstrarem que “bebem do fino”, como canal informativo de alterne. Teria que verberar a confissão de fraqueza de controlo antecipado do desastre por quem devia e talvez pudesse fazê-lo. Não me obrigues, Tito amigo, a esgravatar no lixo.

Pode ser que tenhas razão na tua fúria, mas no final de dia, terás que reconhecer, Tito, que as instituições acabaram por agir a tempo e com a coragem de irem contra a maré, que as perdas do Estado, nossas, são limitadas e que a solução foi, afinal, a única possível. Pois sim, meu caro, responde Tito, ainda indignado: como qualificas a gestão estratégica de um calendário que permitiu o levantamento de depósitos a gente informada por dentro; que enganou todos os que acorreram ao último aumento de capital, perdendo tudo o que apostaram, fossem grandes, fossem pequenas poupanças; que ao mobilizar meios públicos, que nos custam juros, nos privam de os utilizarmos em investimento produtivo; e que afundam com um bloco de cimento as últimas esperanças de termos um mercado de capitais a sério.

Sim, responde Tito, reconheço a valia dos teus argumentos menos o do fim do mercado de capitais: há sempre tontos dispostos a comprar na sexta-feira, a 0,12, o que uma semana atrás valia 0,5, convictos de que faziam um grande negócio, pois “elas” só podiam subir, nunca descer. Não estando outras colocações disponíveis e havendo muita liquidez, passada a crise, o bom papel voltará a crescer. Mas a perda de confiança foi imensa e a faixa de compradores reduzir-se-á aos amantes do alto risco.

Onde tu tens razão, Tito, é no jogo de perdas cumulativas. Todos perderam: os accionistas que ficaram e investiram no banco mau e só receberão algum quando e se o novo capital for integralmente pago; o pessoal que, mesmo transitando para o banco bom, já tem sobre ele a espada do desemprego; o crédito rarefeito que, exaurido de quase cinco milhões, não alcançará as pequenas e médias empresas em que assenta o emprego; e sobretudo os contribuintes, que terão sempre que suportar o risco final de pagar tudo aos credores externos, se o esquema não resultar ou gerar rendimento insuficiente.

Mas e o que me dizes das contradições entre reguladores, que descartam responsabilidades de acção ou inacção de um para o outro? O que me dizes do desabafo de Granadeiro contra quem o deixou em tão maus lençóis? Sim, na verdade, não está a ser bonito ver dois pares de amigos desavirem-se à nossa custa. A única solução será exigirmos o conhecimento de tudo. Já passou o período de reserva. O mal foi feito e nada pode piorar mais do que piorou. Esconder informação, ou, na linguagem de mercado, “blindar acesso a intrusos”, só traz enganos e erros futuros. Os contribuintes têm direito a excepções ao segredo bancário, sobretudo do banco mau: terá que ser pública a lista e valor dos principais depósitos que transitam e não transitam para o banco bom, não por “voyeurismo”, mas para se confirmar se a família agora homiziada alcançou o porto de destino com bagagens ou sem elas.

Estás a ser persecutório, responde Tito. Deixa lá a tal família em paz. Já devem andar alguns a esconder o apelido que antes exibiam, tal como começaram a aparecer nos jornais declarações de respeitáveis figuras explicando que nunca haviam trabalhado para o Grupo, como após o 25 de Abril os jornais publicavam declarações de cidadãos protestando nada terem a ver com a extinta PIDE-DGS.

De certa forma, compreendo a tua repulsa de estrangeirado, Tito. Por cá, continuamos incapazes de gerar ódios, mas somos bons fadistas da adversidade. José Pacheco Pereiro declarou “o meu país está doente” e com razão. Mesmo descontando o excesso do lamento, não é bonito observar que os que nos vendem a mística do capitalismo são os primeiros a destruí-la. Esperemos que tudo acalme. Quando regressares pelo Natal, talvez haja boas notícias, ao menos na política. Já tardam!

Professor catedrático reformado

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