A TAP e o Cinema (“Tirem-me deste filme!”)

Acuso-o, sim, de obediência cega, enquanto deputado, a um Governo que decide hoje do futuro da TAP do mesmo modo que obedeceu sempre aos ditames dos nossos actuais “patrões” europeus e ao FMI.

“Se se limita a concepção de liberalismo ao campo exclusivamente económico e se tem como liberal aquele que preconiza a abstenção do poder político em relação ao campo económico e ao campo social, nesse sentido não sou liberal.”

“O Estado deverá garantir suficiente capacidade humana, técnica e financeira para poder intervir como investidor, realizando projectos de grande dimensão em sectores estratégicos da actividade económica nacional.”

“Portugal precisa de apoio internacional generalizado e merece-o. Esse apoio, venha de onde vier, tem de respeitar a nossa independência e uma rigorosa não ingerência nos nossos assuntos.”

 

Caro deputado,

Confesso que, perante a dislexia da sua resposta, a tentação é grande entre remetê-lo novamente para o texto que aqui publiquei no passado dia 11, ou limitar-me a transcrever a lista dos primeiros 132 apoiantes do Manifesto “Contra a venda da TAP”, e que vão de Adriano Moreira a Carlos do Carmo, de Eduardo Lourenço a Jorge Palma, de Lídia Jorge a Tony Carreira, do general Loureiro dos Santos a Maria do Céu Guerra, de Sampaio da Nóvoa a Fernando Santos, de Miguel Sousa Tavares a Júlio Pomar, de Siza Vieira a Joaquim de Almeida, de João Ferreira do Amaral a Sérgio Godinho, de Francisco Louçã a Camané ou a Pedro Abrunhosa, sem falar do apoio que, entretanto, recebemos do general Ramalho Eanes e das fortes críticas expressas por parte dos insuspeitos Bagão Félix, Manuela Ferreira Leite ou Silva Peneda ao aventureiro projecto de privatização da nossa companhia aérea nacional.

Mas há um aspecto na sua réplica que diz respeito ao que chama depreciativamente a “arrogância generalizada nas pseudo-elites de esquerda” (presumo que se refere aos subscritores do Manifesto) e que, essa sim, merece resposta. V. Ex.ª adjectiva dois substantivos – “elites” e “esquerda” – chamando-nos “pseudo”, o que significa “falso”. Ou seja, pessoas como eu não só cometemos o pecado de ser uma elite de esquerda, como cometemos outro mais grave que é o de o não sermos. Provavelmente V. Ex.ª atribui o adjectivo “pseudo” apenas ao substantivo “elites”, sendo que, nesse caso, me considera realmente de esquerda, mas de uma falsa elite. Eu poderia ser tentado a replicar que V. Ex.ª é um pseudodeputado de direita, mas a verdade é que tem assento na AR, o que lhe dá o estatuto indesmentível de verdadeiro deputado.

E daí decorre, para si, uma superioridade moral, o que o dispensa de respeitar a minha opinião, que, no seu entender, se resume a uma série de “adjectivos impróprios” que me acusa de usar para denegrir quem tem “opiniões diferentes” da minha. Porque, enquanto V. Ex.ª, por exemplo, entende que a TAP tem 4500 trabalhadores, eu, desrespeitosamente, entendo que tem 12.856. E, para si, isto são meras divergências de opinião. Noutro passo, diz que eu me “esqueci de referir” que “o grupo TAP, em 31 de Dezembro de 2013, tinha capitais próprios negativos (…) de 373 milhões de euros” – mesmo se concorda comigo que o passivo se deve fundamentalmente à “desastrosa” aquisição da VEM no Brasil, ainda que, depois, minimize a importância desse enorme pormenor. No seu primeiro artigo, seguramente para impressionar, V. Ex.ª dissera que “o passivo era de mais de 1000 milhões de euros.” E eu respondi-lhe, repondo os números correctos. Mas o Sr. Deputado, que é economista, acha que são opiniões. Leia o que escreveu Filipe Paiva Cardoso, no jornal i, em 26.12.2014 (“TAP. Urgência do Governo choca com evolução das contas”), que fez, esse sim, o trabalho de casa: “… depois de, em 2013, a TAP ter conseguido finalmente inverter a degradação dos capitais próprios, de 380,8 milhões negativos para 373 milhões…” Ora, “inverter a degradação” significa, para mim, que não sou ROC como V. Ex.ª, melhorar a situação. Mas, para si, isto são apenas divergências de opinião, esquecendo-se que, neste caso, a minha não tem o mesmo valor que a sua: com o seu voto no Parlamento, V. Ex.ª detém a bomba atómica, enquanto eu, que sou um simples cidadão, disponho apenas de uma fisga!

Por outro lado, V. Ex.ª ignora sobranceiramente que o passivo da TAP tem sido pago sem ajuda do Estado; e que, fazendo umas simples contas de somar, este passivo seria pago nos próximos três anos. Nesse caso, porquê vender uma empresa que, há 19 anos sem qualquer ajuda do Estado, consegue pagar um passivo desta ordem (cuja origem reside, fundamentalmente, na compra da VEM), e que dá lucro? E à qual o Sr. Deputado devota – quem diria?! – um amor quase obsceno, quando diz frases como esta: “Gosto da TAP como português!!! Gosto da TAP, orgulhoso de poder dizer que em Portugal existe uma companhia aérea que é uma das melhores do mundo (…), segura, onde, quando viajo, 'me sinto em casa'.” (Os pontos de exclamação são seus.)

O Sr. Deputado tem também uma “opinião” sobre os apoios comunitários que varia de artigo para artigo. Donde concluo que V. Ex.ª não tem opiniões, tem palpites. Depois de ter garantido que “é contra as regras comunitárias os Estados subsidiarem ou capitalizarem empresas de transporte aéreo”, reconhece agora que, afinal, não é verdade, mas afirma (é mais um palpite) que isso exigiria “um esforço hercúleo” e a “focalização da actividade da empresa nas rotas lucrativas e a redução de custos com o pessoal (vamos ser mais claros: despedimentos!)” – tudo o que aconteceria, isso sim, se a TAP viesse a ser privatizada.

Mas, se assim é, por que razão o Governo não apresentou em Bruxelas qualquer proposta? Seguramente porque o Governo quer vender a TAP e, para isso, qualquer pretexto lhe serve. No caso dos CTT ou da ANA, o argumento foi que as empresas davam lucro e por isso eram “atractivas”! No caso da TAP é porque precisa de uma “injecção de capital” e o Governo não pode fazê-lo!

O que a TAP precisa, caro Sr., não é de ajuda estatal, nem de dinheiro do Estado, muito menos de uma “ajuda” brasileira; o que a TAP precisa é de “ser deixada em paz”, como muito bem disse Miguel Sousa Tavares. E o que me choca é imaginar que um cidadão português, especialista em comprar e vender empresas, consegue meter dinheiro na TAP, servindo de testa-de-ferro ao negócio que se prepara com o Brasil (sabia que a EU obriga a que qualquer companhia aérea nacional seja detida maioritariamente por capitais europeus?) – e que o Governo afirme que o Estado português não consegue! Para que é que pagamos impostos senão para que o Estado, entre outras coisas, defenda o interesse nacional, como defenderia qualquer social-democrata ou qualquer democrata-cristão que se respeitasse?

Só mais duas coisas:

O Sr. Deputado ofende-se por eu o acusar de ignorância e de incompetência, coisas que provei abundantemente. Mas acrescenta que o acuso de má-fé, o que eu não fiz, porque não faço juízos de intenções. Acuso-o, isso sim, de obediência cega, enquanto deputado, a um Governo que decide hoje do futuro da TAP, do mesmo modo que obedeceu sempre, obsequiosamente, aos ditames dos nossos actuais “patrões” europeus e ao FMI, mesmo quando vão contra o legítimo interesse nacional, numa subversão total dos princípios que guiaram os pais fundadores do que é hoje a União Europeia, e que deviam presidir também à acção dos nossos governantes.

E acusa-me de “preconceito ideológico relativamente à iniciativa privada” (é falso: eu sou pelo mercado, quando se trata de poder escolher a minha cerveja), quando V. Ex.ª abraça sem reservas o preconceito contrário, a favor dos méritos da iniciativa privada, mesmo quando se trata de lhe entregar sectores estratégicos do Estado, instrumentos de soberania e mesmo monopólios naturais. Se os casos do BPN, do BES, da Cimpor e da PT não estivessem na memória recente de todos, eu teria que desenvolver argumentos para o rebater. E se os exemplos de companhias aéreas nacionais privatizadas, como querem fazer à TAP (e dei-lhe os exemplos da Iberia e da Olympic Airlines), não falassem por si.

Quanto às suas opiniões sobre o cinema, registo o apreço em que tem os meus filmes, mas dispenso-me de as comentar; como V. Ex.ª reconhece, “a comparação é infeliz”, porque “nada tem a ver uma coisa com a outra”.

Termino com dois apelos: o primeiro é que me volte a responder, porque me dará azo a explicar melhor aos portugueses o que aconteceria à TAP (o risco da perda do hub de Lisboa e dos slots, os despedimentos, a parasitagem aos apoios estatais, como nas PPP, os custos irreparáveis para a nossa economia, a perda de um instrumento essencial para a política da língua, que é o nosso grande activo, o desrespeito do famoso “Caderno de Encargos”, os riscos de falência, etc., etc.) se viesse a concretizar-se esta privatização low cost que o Governo anuncia e V. Ex.ª subscreve.

O segundo é que, no respeito que reclama pelo debate vivo e pela sã convivência das opiniões, subscreva e depois vote favoravelmente o pedido de um referendo que vamos entregar à AR para que se ouçam os portugueses sobre uma matéria tão grave como a privatização da nossa companhia aérea nacional, que faz 70 anos dentro de um mês.

PS: As frases que cito à cabeça do artigo são de Francisco Sá Carneiro.

Cineasta


 

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