A necessidade de um comando político-económico supranacional

A correcta governação de uma comunidade de países monetariamente unificada exige a institucionalização de um comando político-económico supranacional

Por alturas da Guerra dos Trinta Anos, episódio especialmente trágico na história europeia, um autor coevo, de seu nome Pavel Stranskyy, escreveu um livro intitulado República da Boémia, onde, a dado passo, se pode ler o seguinte: “Nem a peste, nem a guerra, nem as incursões hostis dos inimigos, nem a pilhagem, nem o fogo, podem causar tanto dano à boa gente quanto aquele que é provocado pelas frequentes alterações do valor da moeda.”

Stranskyy, como possivelmente grande parte dos seus contemporâneos, estava traumatizado com a inflação descontrolada que então se verificava nas regiões da Suábia e da Saxónia. Há quem afirme que remonta a essa época a inquietação colectiva germânica com o fenómeno da inflação, depois hiperbolizada na primeira metade do século XX por razões sobejamente conhecidas.

Isto vem a propósito do debate instalado nas últimas semanas na frente económica europeia. No mês passado, a taxa de inflação verificada na zona euro foi da ordem dos 0,7%, muito longe dos apelidados virtuosos 2%. De imediato, um fantasma surgiu no horizonte europeu – o risco da deflação. Estará a Europa a caminho de uma situação idêntica àquela que caracterizou os últimos vinte anos da economia japonesa, com as consequências conhecidas da estagnação económica e do aumento drástico do valor da dívida pública? E, se assim for, que antídotos devem ser administrados no intuito de obviar à consumação de tal desastre? Como é óbvio, as respostas divergem devido, por um lado, ao pluralismo do pensamento económico e, por outro lado, à diversidade das experiências históricas nacionais.

No meio desta discussão, surgiram duas questões que ilustram com particular acuidade algumas das limitações do actual debate político europeu. Curiosamente, uma remete da técnica para a política e a outra, ao contrário, da política para a técnica. Ambas demonstram o carácter inextrincável destas duas dimensões, bem como a importância do factor tempo na sua dupla dimensão de mudança e de permanência.

Avaliemos a primeira questão. Vários economistas têm vindo a sustentar a tese da progressiva perda de eficácia da política monetária enquanto instrumento de combate ao risco da deflação. Alicerçam esta posição na observação empírica do que tem vindo a suceder nos países da OCDE desde os anos oitenta até à actualidade. Uma política monetária mais expansionista não produz os resultados esperados no plano da reactivação da actividade económica. Não quer isto dizer que os seus efeitos sejam nulos, mas são tendencialmente decrescentes. As razões apontadas para justificar tal facto são as seguintes: o elevado nível de endividamento público e privado destes países, o envelhecimento das respectivas populações, naturalmente indutor de uma substancial contracção da propensão para o recurso ao crédito, e a inexistência de verdadeiros motores de crescimento na economia real. Esta tese coloca uma questão muito interessante – até que ponto estão parcialmente desqualificadas as soluções de política económica mais tradicionais, sejam de orientação keynesiana ou neoliberal, dada a alteração dos papéis atribuíveis aos vários instrumentos de intervenção macroeconómica? Um certo atavismo doutrinário pode conduzir ao cometimento de erros resultantes da adopção dos meios inadequados para a concretização dos fins pretendidos. A rigidez mental no plano da técnica económica pode produzir consequências políticas muito negativas.

A segunda questão coloca o problema, de uma certa maneira, ao contrário. Na semana passada, o BCE optou por baixar as suas taxas de juro com a intenção de diminuir o risco de surgimento do fenómeno deflacionário. Mario Draghi, uma vez mais, esteve à altura da situação. Contudo, a decisão não foi tomada por unanimidade; no Conselho Directivo verificaram-se vários votos contra. Ora, quem votou contra? Alemães, secundados por holandeses e austríacos. É inevitável concluir que, em torno deste tema, se reconstituiu a linha divisória entre o espaço de inspiração germânica e o sul do continente, que tantos prejuízos tem causado nos últimos tempos ao projecto europeu. Aliás, o grande problema da União Europeia reside precisamente aí – na aparente supremacia das clivagens histórico-culturais sobre os antagonismos de natureza doutrinária. Daí que se aguarde com expectativa o programa e a acção do próximo Governo de coligação alemão. Até aqui, os países do Norte têm pugnado por uma combinação letal de austeridade orçamental e de ortodoxia monetária. Felizmente, o BCE tem revelado outro entendimento das coisas. O que, porém, aqui importa reter é a força de uma inércia histórica que prejudica a adopção de políticas mais consentâneas com o estado actual do continente europeu. A memória nacional alemã associada a alguns preconceitos que os países do Norte cultivam em relação aos povos do Sul têm prejudicado a concretização de políticas propiciadoras do crescimento económico dos países mais afectados pela presente crise. Ora, e isso é o que importa aqui acentuar, essas inércias históricas só podem ser resolvidas através de entendimentos políticos e não pelo recurso à invocação de qualquer tipo de racionalidade técnica. Neste caso, é preciso saber lidar com o peso da história sem que os decisores públicos se deixem aprisionar por ela.

Estas duas questões permitem-nos tirar algumas ilações úteis: por um lado, constata-se a necessidade de uma permanente actualização do pensamento inspirador das políticas económicas para que estas possam influenciar a evolução da realidade; por outro lado, verifica-se que a correcta governação de uma comunidade de países monetariamente unificada exige a institucionalização de um comando político-económico supranacional.

Deputado do PS
 
 
 

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