A Casta e o Novo Centro

Há dois conceitos que desde há algum tempo se adivinhava estarem para fazer a sua entrada no léxico político e no dia a dia português. São, respectivamente, "a casta" e "o novo centro". O primeiro como diagnóstico do problema da falta de saúde da nossa democracia e, o segundo, como início de um caminho para criar soluções a partir da política.

São dois conceitos importantes porque identificam problemas e soluções para a democracia portuguesa. Sem os abordar é muito provável que demoremos muito mais tempo a sair do impasse a que chegámos politicamente.

Passados quarenta anos de democracia continuamos a pensar demasiado igual ao que sempre pensámos. Ou seja, continuamos a querer explicar acontecimentos diferentes à luz das mesmas leituras.

Se a sociedade muda, se valores e atitudes se alteram, se a economia se transforma, se a cultura sempre inova, se a criatividade dá origem a novo conhecimento científico, a novas tecnologias e novos bens e serviços, porque haveria a política, o sistema partidário e a sua análise ficar prisioneira da imobilidade, das velhas respostas para tudo o que parece novo?

Esta é uma pergunta sensata, pois a política não é um espaço desligado de tudo o resto - ou não devia ser. Se a política se fechar sobre si mesma, efectivamente, desliga-se da realidade, dando origem a uma caricatura de si própria, aproximando-se daquilo que hoje tanto criticamos nela e nos seus actores principais (o comportamento dos líderes políticos e das celebridades políticas televisivas).

Muito provavelmente precisamos entender que a crise de 2008, a chegada e, posterior, falhanço do projecto do Euro, como instrumento de crescimento europeu, e as mudanças sociais latentes no virar do século na Europa, criaram um momento de potencial mudança na forma das pessoas olharem para a política e para o que querem da política.

Como sempre querem emprego, querem segurança (incluindo pensões), hoje e no futuro,  mas acima de tudo querem dignidade para si e para os seus mais próximos, o que implica menos desigualdades, mais democracia e, acima de tudo, poder confiar nos seus representantes, que aqueles os não enganem e que falem a sua linguagem, pois só assim poderão compreender as suas aspirações e desejos.

O desencanto com partidos, governos, políticos é generalizado por toda a Europa, a abstenção continua a progredir há décadas e tudo isto não pode ser apenas culpa de uns poucos, mesmo sendo os líderes políticos os, normais, bodes expiatórios das sociedades contemporâneas ou, pelo menos, assim nos ensina a análise que vamos fazendo.

A palavra "casta" tal como tem vindo a ser utilizada em Espanha, Itália, Grécia e, também agora, em Portugal, não se refere apenas ao conjunto de políticos que é apanhado nas malhas da corrupção ou das zonas cinzentas das trocas de favores.

"Casta" refere-se também a um grupo, com características de reprodução social em ambiente fechado, ou seja, partidos que estão há muito tempo sem se transformarem, porque são mecanismos de reprodução de uma forma de agir, competir, estruturar actuações e, acima de tudo, uma escola para passar às novas gerações, ou aos recém chegados, práticas e atitudes criadas e experimentadas há muito tempo.

O objectivo positivo dos partidos é ganhar o poder e isso é bom é essa a base da democracia, mas não se podem tornar em instrumentos de reprodução da "casta".

O problema nos partidos, ou de qualquer outra organização, não reside na sua antiguidade, mas sim no modo como se organizam, se são permeáveis ou não à novidade, e se são, ou não, adaptáveis à mudança percebida pelo resto da sociedade.

Daí, que se possa ser um bastante velho partido, assente em princípios e valores conservadores, e adaptar a sua visão conservadora de ontem aos dias de hoje e demonstrar a sua abertura. Ou ser um novo partido, com inspiração em práticas antigas e nascer sem capacidade de inovar.

A "casta" em Portugal está tanto presente naqueles que desde há quarenta e mais anos, antes e depois da revolução, estão presentes na actividade política quanto naqueles que há poucos anos se iniciaram na sua prática política partidária.

Pertencer à "casta" é uma escolha, não é uma inevitabilidade associada a fazer política. E pode-se pertencer à "casta" sem nunca haver sido corruptor ou corrompido.

Pertencer à "casta", é pertencer ao circuito que liga postos políticos e governamentais a posteriores empregos em empresas oligopolistas públicas, privatizadas ou desde sempre privadas.

Pertencer à "casta" é também achar que não faz mal haver cada vez menos pessoas a votar nos partidos, porque desde que alguns votem tal é suficiente para ser eleito deputado ou assumir um lugar no governo.

Pertencer à "casta" não é estar apenas num partido do arco de governo, pois também há exemplos dessa mesma forma de pensar e agir em todos os partidos.

Ou seja, pode-se pertencer à casta e ir a votos com qualquer símbolo do topo até ao fim do boletim de voto. Não há partidos que pertencem à "casta", há sim partidos com muita gente que pertence à "casta".

E pode-se pertencer à "casta" e nunca ter exercido um cargo político, como demonstram ainda hoje o elevado número de "gestores celebridade" que se eternizam enquanto membros de conselhos de administração de empresas ao longo das décadas, através da sua rede de contactos com a "casta".

Como um dia um ex-Presidente de um país sul-americano me explicava sobre o seu país ( utilizando uma outra palavra para descrever "casta"): compreender este país é compreender que os partidos lutam sempre contra a "situação" e que quando perdem essa luta são colonizados por ela e dão origem a maus governos ao centro-direita ou ao centro-esquerda, com a corrupção que os acompanha".

Obviamente, assumir que há uma "casta" também não quer dizer que há "puros", porque os não há. Existem sim pessoas nos partidos, em todos, que não estão disponíveis para continuar a fazer da política uma máquina de mascarar o exercício do poder por parte da "casta", através de fazer crer que o próximo governo será um governo do povo, ou então que só os que desde, sempre, se preparam para exercer o poder podem aspirar a governar enquanto políticos sérios.

Ou seja, há em todos os partidos pessoas disponíveis para criar um "governo de cidadãos" e não um governo de "políticos sérios" ou um "governo do povo", que na realidade nada mais são do que termos populistas destinados a perpetuar o exercício do poder pela "casta".

No entanto, não são apenas os militantes e simpatizantes dos partidos que são eleitos, é também a sua manifestação pública enquanto organização, isto é, os partidos.

Precisamos de partidos, tanto à direita como à esquerda, que tenham como missão combater as causas da formação de "castas", porque em última análise é a "casta" que destrói os partidos.

É o combate à "casta" dentro de todos os partidos que pode impedi-los de definhar pelo afastamento entre si e aqueles cidadãos que procuram rever-se neles através do voto.

O maior perigo que hoje a "casta" coloca aos partidos portugueses, e por arrasto ao todo da sociedade portuguesa, é o de impedir os partidos de entender que, embora as eleições se ganhem ao centro, esse mesmo centro não está há quarenta anos no mesmo local, pelo contrário ele move-se.

Os pressupostos de actuação política de há quarenta anos, repetidos incessantemente, em conjunto com os últimos anos de crise, produziram uma realidade alternativa àquela que os partidos julgam ver através das sondagens.

Há um novo centro político que já não está onde os partidos do centro julgam estar. Deixou de lá estar por via das políticas de austeridade que, tanto socialistas quanto conservadores aplicaram por toda a Europa.

Na realidade os partidos socialistas e conservadores só conseguem actualmente ganhar governos, ou o parlamento europeu, quando se coligam, no entanto, ao juntarem-se não estão nunca a governar para o centro político real tal como é definido pelos seus cidadãos.

O novo centro político é, assim, a soma potencial de todos aqueles que optaram pela abstenção ao longo dos anos (e em particular desde a crise de 2008) e daqueles que continuam, por hábito mas não por confiança, a votar socialista ou conservador na Europa.

Não há inevitabilidade no desfasamento entre o centro real e o centro magnético lido pelas intenções de voto. E, portanto, essa tarefa pode ser ganha por qualquer partido, incluindo os partidos socialistas e conservadores que corrijam as suas trajectórias - embora tal implique mudar práticas, pessoas e discursos, o que é tudo menos fácil.

Entretanto, o novo centro político é, por sua vez, alvo de tentativas de ocupação pelos actores sociais menos expectáveis no quadro político europeu, por vezes mais à esquerda outras vezes mais à direita.

Por exemplo, os que vindo da extrema esquerda fazem road shows na City de Londres (como se fossem empresas em busca de presença em bolsa) ou por aqueles que começando marxistas acabam escolhendo programas de governo que poderiam ser os de Helmut Kohl ou François Miterrand ou, ainda, quando a extrema direita ocupa o terreno dos eleitorados comunistas da década de oitenta.

Porque há esse novo centro político, surgem partidos que o querem representar como na Grécia o Syriza, avançando a passos largos para uma prática política social democrata, ou o Podemos que aprendeu nas ruas que o radicalismo já não é ser marxista mas sim ser social democrata e, se necessário, criar pontes com a doutrina social ou a da libertação, como quando envia tweets, em plena sessão no parlamento europeu com o Papa, em que se lê que o programa económico do Papa Bergoglio é o do Podemos.

Há no entanto duas condições necessárias para que um novo centro político se possa traduzir em governo. Ou, pelo menos, esse é o ensinamento do "Yes we can" de Obama, depois traduzido para "Podemos" em Espanha.

Em primeiro lugar para se ser, potencialmente, governo há que apostar numa liderança carismática, no uso da comunicação televisiva, na adopção de um programa social democrata radical e no uso das redes sociais dentro e fora da Internet.

E, em segundo lugar, a escolha do momento, é claro. Isto é, tentar chegar ao poder no momento certo, que para o sul da Europa será quando a reestruturação das dívidas europeias estiver, por vontade alemã, em cima da mesa. Daí que o primeiro ano de todas as mudanças, ou da eternização da austeridade, seja 2015.

Docente do ISCTE-IUL em Lisboa e investigador do Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris

 

 

 

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