À beira do fim, o que resta da Moviflor são monos e dívidas que ficam por pagar

Credores aprovaram encerramento da empresa de mobiliário. Total de dívidas apuradas já chega aos 128 milhões de euros.

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Credores decidiram encerrar a actividade da Moviflor Rui Gaudêncio

Era o resultado que Amélia Rodrigues esperava. Seis horas e meia numa sala de audiências com lotação esgotada no Tribunal do Comércio de Lisboa tiveram o desfecho previsível. Os credores da Moviflor aprovaram o encerramento da empresa e a venda do património.

No elevador, momentos antes de a sessão arrancar, Amélia tremia. “Estão, ainda estás com frio?”, perguntava-lhe uma colega. “Isto não é do frio. Tu sabes do que é”, desabafava. Amélia assistiu à agonia da empresa onde trabalhava desde 2008, o ano em que abriu a loja de Setúbal. Era recepcionista do armazém e, “lá em baixo”, testemunhou as primeiras falhas de entrega de mercadoria. As reclamações constantes dos clientes, a pressão, os salários em atraso e as primeiras dificuldades em por comida na mesa de casa. Meses depois, está aqui, à porta da sala de audiência à espera “do princípio do fim de uma grande esparrela”. Já não tem esperança de recuperar os salários em atraso. A questão, agora, é outra.

“Tenho esperança que façam algo em relação à IFC, que está aberta e a vender móveis da Moviflor. Em Setúbal tiraram tudo”, conta, referindo-se a produtos que foram desviados pelos donos da empresa e colocados à venda numa loja da Bobadela (antiga Moviflor), com o nome de Outlet de Móveis e propriedade de um dos accionistas.

Está uma multidão à porta da sala, pequena de mais para albergar tantos credores. São quase todos trabalhadores, homens e mulheres que nos últimos tempos passaram a dominar termos jurídicos como “reclamação de créditos”. Isabel Duarte avançou com o pedido de insolvência da empresa que deu origem a esta assembleia de credores e à nomeação de um administrador de insolvência. O seu processo é um dos oito que entraram nos tribunais durante o ano passado a pedir contas à Moviflor pelos pagamentos em falta. “Depois de tantas mentiras, estamos vacinados”, garante. Lídia Oliveira, que será representante dos trabalhadores na comissão de credores, só espera que tudo se encaminhe para “um processo de gestão danosa”.

O encerramento da empresa de mobiliário, fundada há 40 anos por Catarina Remígio e com uma marca reconhecida em todo o país, foi aprovado por todos os que estavam presentes na sessão, com a abstenção da Autoridade Tributária e Aduaneira. Até agora, o total de dívidas apuradas chega aos 128 milhões de euros, mas os valores ainda não são definitivos. A maior fatia cabe aos bancos, sobretudo ao Banif, que vai presidir à comissão de credores. O técnico oficial de contas da Moviflor, através da sua advogada, quis fazer parte da comissão, o que provocou a indignação dos trabalhadores. O seu nome foi chumbado em peso.

Pedro Ortins de Bettencourt, administrador de insolvência, deixou desde logo claro que as hipóteses de recuperação do negócio eram nulas. “Viabilidade da empresa? Nenhuma, como é óbvio”, disse, durante a apresentação do seu relatório – documento obrigatório que inclui a análise da contabilidade da Moviflor, agora denominada Albará.

“Estamos perante um gigante que cresceu além do que deveria e sem o devido suporte. Na prática, muitas das lojas estavam esvaziadas. O que ficou, além de um conjunto de monos, são móveis incompletos. E houve um esforço de liquidação dias antes do encerramento”, contou. Tal como o PÚBLICO noticiou, os donos da Moviflor retiraram material no valor de mais de 1,9 milhões de euros, que posteriormente colocaram à venda no Outlet de Móveis da Bobadela. Os produtos ainda mantinham as etiquetas da empresa de mobiliário e foram vendidos à IFC, cujo administrador único é Carlos Alberto Jesus Ribeiro, que até 4 de Agosto de 2014 foi dono da Moviflor SGPS, a holding que detém 75% da Moviflor Angola. Carlos Ribeiro também é identificado como companheiro de há vários anos de Catarina Remígio, fundadora da empresa portuguesa, com quem partilha residência.

O stock, incluindo viaturas e computadores, foi vendido à IFC pela Moviflor por 20% do seu valor, o que equivale, pelos dados avançados por Pedro Bettencourt, a cerca de 468 mil euros. Contudo, nas guias de transporte que comprovam esta transacção o montante que consta é de apenas 180 mil euros. Todos estes números estão muito distantes do valor contabilístico do material: 1.902.603 milhões de euros.

A diferença abissal de montantes é explicada pelo administrador de insolvência com a descida do valor de mercado da mercadoria, a maior parte, de exposição. “A dois dias do encerramento [em Outubro] tentou-se vender tudo. De acordo com a leiloeira que avaliou os activos é mercadoria de exposição. E não tem agora o mesmo valor de mercado. Se a quisesse vender num leilão não conseguia aquele valor”, afirmou.

Pedro Bettencourt admite que, apesar de escasso, o valor a que os móveis foram vendidos até era equilibrado. O problema é que a administração da Moviflor “deu indicações para processar os pagamentos não para os credores, mas para a satisfação de créditos dos accionistas”. Ou seja, as receitas obtidas com esta venda foram imputadas nas contas correntes de um accionista (Carlos Coelho, filho de Catarina Remígio), “favorecendo um credor relativamente a todos os outros”.

Numa tentativa de recuperar dinheiro, o gestor judicial reuniu com a IFC com quem acertou o pagamento dos 180 mil euros registados nas guias de transporte. “Foi proposto pagarem em seis prestações iguais entre Janeiro e Junho. Ontem transferiram a primeira, de 12 mil euros, o único dinheiro que conseguiram”, revelou, acrescentando que a dona do Outlet de Móveis ainda tentou ficar com produtos da loja do Porto.

Quando as lojas foram encerradas, no início de Outubro, alguns dos trabalhadores foram convidados por accionistas da Moviflor para se candidatarem a um emprego na IFC. Ruben Cordeiro foi um deles. E conta como, a 16 de Outubro, se encontrou com os responsáveis para ouvir a proposta. “Queriam que fizesse um novo contrato de trabalho. E quando os questionei sobre os salários em atraso, disseram-me para encarar a oferta de emprego como sendo para outra empresa. Mas as pessoas, os donos, são os mesmos”, revela.

À data de hoje o património da empresa é escasso, impedindo o Estado, bancos, trabalhadores, fornecedores e clientes de reaverem os seus créditos. E à volta da gestão da Moviflor pairam várias dúvidas. Algumas das lojas estavam em nome dos accionistas, incluindo filhos de Catarina Remígio, mas a sua construção e aquisição era paga pela empresa. Jorge Gaspar, advogado que representa 29 trabalhadores do Fundão, alertou para o “risco do património ser transferido para terceiros, o que poderá dificultar a sua recuperação”.

A palavra “insolvência culposa” soou algumas vezes na assembleia de credores, ouvia-se entre os trabalhadores, visivelmente revoltados com a situação em que se encontram. Contudo, este cenário só será analisado quando estiverem apurados todos os elementos.

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