Vila Sassetti: um castelo da Lombardia para Sintra

Um chamava-se Victor Sassetti e era dono de hotéis de luxo, o outro, Luigi Manini, foi cenógrafo do São Carlos e arquitecto a custo. Entre Sintra e Lisboa tornaram-se amigos e criaram uma casa de recreio romântica, fortaleza em miniatura, que em breve começará a ser restaurada.

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Vila Sassetti, com a torre característica João Silva
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A casa do guarda, onde funcionarão os wc e a cafetaria de apoio aos que fizerem o percurso a pé pela quinta, entre o centro da vila e o Castelo dos Mouros e o Parque da Pena João Silva
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Aspecto do interior da casa, depois das muitas alterações impostas pelos sucessivos donos João Silva
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Um dos anexos da quinta, junto ao pombal João Silva
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O jardim também será deixado o mais próximo possível do original João Silva
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O jardim também será deixado o mais próximo possível do original João Silva
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Luigi Manini (em cima, ao centro) e família no terraço da Vila Sassetti, C. 1902 Cortesia: Gerald Luckhurst
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Sala de jantar da Vila Sassetti, c. 1894-1912 Cortesia: Gerald Luckhurst/Fundo Luigi Manini
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Quarto, com as paredes cobertas de sedas, c. 1894-1912 Cortesia: Gerald Luckhurst/Fundo Luigi Manini

A sala é luminosa, com os tectos brancos trabalhados e pinturas murais com cenas de campo e de floresta, junto à água, que parecem saídas de antigos cenários de ópera, teatro e bailado. É quase hora do almoço mas cheira a café e a bolos, como se alguém tivesse acabado de abrir o forno. Hoje é o restaurante e sala de chá Dona Maria, mas no passado, o edifício alaranjado do n.º 3 do Largo Ferreira de Castro era um dos hotéis mais procurados de Sintra, o Victor, com direito a casino e hóspedes ilustres como Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco, que chegam a tomá-lo por cenário nos romances Os Maias e A Queda de um Anjo.

O Victor – assim se chamava por causa do seu proprietário, o italiano Victor Sassetti (1851-1915) – está hoje quase todo devoluto. À parte do Dona Maria e de uma loja difícil de definir, tem apenas duas moradoras, já que, depois de fechado o hotel que fazia concorrência ao Netto e ao Costa, foi convertido em prédio de habitação.

“A sala do restaurante funcionava como casino do hotel, e por aqui passava a alta burguesia de Lisboa que vinha a Sintra ver as burricadas”, diz o dono do restaurante que reabriu há um ano com nova gerência, Luís Vitorino, que é também o chef da casa. “O dono era muito importante. Tinha outro hotel em Lisboa e um chalet mesmo aqui perto”.

O hotel a que Luís Vitorino se refere é o Braganza, um dos melhores da Lisboa do século XIX, onde se hospedavam embaixadores, reis, sultões e enviados do Papa, poiso predilecto dos Vencidos da Vida – grupo de intelectuais e políticos de que faziam parte Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro ou Eça de Queirós – hospedaria de luxo por onde chegou a passar a popular actriz francesa Sarah Bernhardt. O chalet é a Vila Sassetti, casa principal da Quinta da Amizade, a meia encosta entre o centro da vila e o Castelo dos Mouros, um projecto do cenógrafo, pintor e arquitecto italiano Luigi Manini (1848-1936), o autor do Palace Hotel do Bussaco e da Quinta da Regaleira, um dos monumentos mais visitados de Sintra, paragem obrigatória do circuito místico da serra.

É precisamente a Quinta da Amizade, com os seus 1,2 hectares e a casa acastelada que Sassetti e Manini conceberam lado a lado, que a Parques de Sintra-Monte da Lua, empresa de capitais públicos que gere a paisagem cultural de Sintra, comprou no final de 2011 à autarquia por pouco mais de um milhão de euros e que agora se prepara para recuperar, num projecto de intervenção que custará 600 mil, financiado a 65% pelo Programa Operacional Regional, e cuja primeira fase deverá estar concluída em Junho. Uma compra estratégica, explica ao PÚBLICO Nuno Oliveira, director técnico para o património natural da Parques de Sintra, estrutura que já tem ao seu cuidado, por exemplo, os palácios Nacional de Sintra e o da Pena.

“Nós precisávamos de estabelecer mais uma ligação pedonal [já existe o Caminho de Santa Maria, em direcção a S. Pedro] entre o centro da vila e o Castelo dos Mouros e o Parque da Pena, para que as pessoas possam evitar a estrada de alcatrão”, explica. “A Vila Sassetti, que fica numa faixa de terreno a meia encosta, com a extrema da propriedade a tocar os penedos do castelo, é perfeita para isso.”

A faixa estreitinha de terreno é muito íngreme e no Inverno o caminho principal que leva à casa que Manini desenhou à imagem dos castelos da Lombardia, onde nasceu, fica coberto de musgo, como se estivesse alcatifado. É esta topografia acidentada, que o cenógrafo que chegou a Portugal em 1879 para trabalhar no São Carlos vindo do Teatro a la Scala e que enfrentou duras críticas e pateadas até à consagração, fez questão de respeitar, criando um chalet para que o seu proprietário pudesse descansar e meditar entre amigos e família, no meio da natureza, na melhor tradição romântica.

Primeiro a paisagem
O domínio que tem da paisagem é absolutamente privilegiado. Além da vila, e apesar de estar escondida pelo arvoredo - uma das suas singularidades, já que a maioria das casas de recreio de Sintra tende a aproximar-se da estrada -, tem ao alcance de quem nela passeia vários pontos de interesse, da Quinta da Regaleira (Manini numa fase muito mais sofisticada enquanto arquitecto) à do Relógio, passando pelo Palácio de Seteais e o imponente Chalet Biester, com os seus telhados negros. Vê-se, até, chama a atenção Nuno Oliveira, o coreto vermelho da Quinta Velha, “a mãe de todas as quintas de Sintra”, que foi propriedade dos Pombal.

A Parques de Sintra já limpou parte do jardim, mas só adjudicará a intervenção definitiva em todo o coberto vegetal, caminhos e linhas de água ao longo deste mês, ao passo que as obras na casa principal e na do guarda, onde serão instaladas casas de banho e uma cafetaria para dar apoio a todos aqueles que decidirem percorrer a pé os cerca de dois quilómetros que separam a vila do castelo e da Pena, só deverão arrancar em Março. “Teremos de fazer saneamento – a quinta não tem esgotos nem água potável, apesar das muitas minas, e a instalação eléctrica é miserável – e de recuperar por completo a casa do guarda. Na casa-mãe, a primeira fase será apenas a da intervenção no exterior e nas coberturas, para lhe devolver o mais possível o seu aspecto original”, precisa o técnico, explicando que as linhas de água do jardim foram interrompidas, “o que lhe roubou a possibilidade de ter pequenas cascatas que lhe dariam um som característico”, que já não há vestígios das árvores de citrinos que cresciam entre carvalhos e que da latada de parreiras e rosas só resta a estrutura, já muito degradada.

Devolver ao chalet a sua forma original implica, para já, mexer, por exemplo, nas janelas e portas, retirar-lhe as grossas grades de ferro encimadas por cruzes de Cristo que serão um acrescento dos anos 1950 e que parecem evocar masmorras medievais. “Só no Verão começaremos a mexer nos interiores, que estão a ser estudados.”  

Lá dentro a casa é pequena e parece hipotecar boa parte da sua área em escadarias e corredores. “As divisões são minúsculas, sem espaço para se estar”, diz Denise Pereira, historiadora que tem vindo a estudar a obra de Luigi Manini, que no chalet Sassetti tem o seu primeiro ensaio como arquitecto. O italiano concebeu a casa em estreita colaboração com o dono, garante num artigo da revista Vária Escrita (2004) que assina com o arquitecto paisagista Gerald Luckhurst, e “para ser vista ao longe, em constante movimento – apreciando a graça do jogo volumétrico sob todos os ângulos […]”.

A grande preocupação, explica ao PÚBLICO, é a relação da casa com o exterior e a das pessoas, quando no interior, com todo aquele verde que as rodeia. “É uma casa que não fere, que não degrada a paisagem, que tenta aperfeiçoá-la”, diz a historiadora, lembrando que a sua construção – entre 1890 e 1894 – coincide com a das grandes descobertas naturalistas, em que se inicia toda uma revisão do conhecimento e uma reavaliação da relação do homem com o meio.  

Fiel à história
A grande mistura de materiais do projecto original – pedra rústica, tijoleira, apontamentos de cantaria em portas e janelas e nos elementos ornamentais, como um alto-relevo com as armas dos Sassetti, família também da Lombardia, embora Victor tivesse nascido em Sintra – acentua-se à medida que a casa, depois da morte do empresário, foi mudando de donos, depois de numa primeira fase ter sido arrendada a Calouste Sarkis Gulbenkian. Hoje há azulejos mouriscos de padrão do século XVI misturados com painéis multicolores figurativos do XVII e as sedas que cobriam as paredes de algumas das divisões, e que se vêem nas fotografias antigas de finais do século XIX, foram substituídas por tinta ou por papel.

 “A mistura de materiais, a alternância dos volumes e as torres com ameias mostram que Manini privilegiou neste projecto a fidelidade ao modelo histórico” dos castelos da Lombardia, acrescenta Denise Pereira, lembrando que, para o conceber, deve ter feito muita investigação. “A veracidade é uma preocupação que ele tem tanto na cenografia como na arquitectura”, onde começou por ser olhado com desconfiança porque se temia que não tivesse os conhecimentos necessários para fazer os cálculos que um edifício sólido exigia. Uma desconfiança que acaba por vencer, primeiro com o Bussaco, que começa a construir ainda com a Vila Sassetti em curso, e por fim com a Regaleira, talvez o seu projecto maior.

Para além da óbvia ligação à Lombardia, e pelo pouco que se sabe do temperamento de ambos, Sassetti e Manini partilhavam um espírito reservado, discreto, diz Denise Pereira, que chegou a conversar com descendentes do cenógrafo e arquitecto que o conheceram. Um deles garantiu-lhe que Manini só esboçava um sorriso quando falava de Portugal. “São muitas as histórias sobre ele, mas o que está documentado é muito pouco.” Deixou Portugal em 1913, depois de uma série de desgostos pessoais, e de ter visto implantada a República. Voltou à Lombardia, à cidade de Brescia, “que é à sua maneira uma Sintra”. Para trás ficaram, diz-se, as longas conversas com Maria Pia, em dialecto milanês. A rainha, italiana como ele, chamava-o ao paço sempre que sentia saudades de casa.
 

Notícia corrigida às 11h30: dizia-se erradamente que a Parques de Sintra gere o Palácio Nacional de Mafra quando se pretendia escrever Palácio Nacional de Sintra

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