Uma inclinação musical para a queda

Uma antologia suficientemente ampla e produtiva para permitir uma releitura, ou a descoberta, de um dos mais importantes poetas revelados nas últimas décadas

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Manuel de Freitas é um poeta autêntico no sentido em que leva a perda, que a sua poesia tão amplamente tematiza, até às últimas consequências Inês Dias

“A poesia”, escreveu Sartre, “é um quem perde ganha. E o poeta autêntico escolhe perder, a ponto de morrer para ganhar”. Seria decerto ínvio arriscar um lema desta concisão para alguém com um percurso de poesia tão importante e amplo quanto o de Manuel de Freitas. No entanto, nas palavras do autor de O Ser e O Nada encontram-se pistas que se podem revelar úteis na leitura desta poesia. Poderíamos começar por propor a perda como princípio norteador, ou pelo menos passível de organizar uma leitura mais ou menos abrangente, como a que aconselha uma antologia. Perda da própria vida, mas também aquela que atinge as palavras, incapazes de deter esse terramoto em constante anúncio, até à aniquilação final.

No que se descreve o arco da existência, muito mais do que da “vidinha” — que pode ou não estar em casa nos versos de Manuel de Freitas. A morte de que, por fim, se trata, naquele trecho, é elemento axial do ganho que, uma vez postulado, regressa ao outro cabo da equação para tornar a ser perda. Uma proposta que talvez encontre não se dirá apaziguamento mas uma breve ilustração em Cronofobia (Assírio & Alvim, 2002) – “Sou contemporâneo de Villon/ e escrevo às vezes a Montaigne,/ arguto mas demasiado absorto/ no renome e na sabedoria instável/ dos seus livros anotados.” O teor ironicamente trans-histórico deste poema não autoriza a supor uma concepção indulgente do sujeito como entidade que viva acima das suas possibilidades terrenas. Tanto mais que a corrente irónica que percorre estes versos mais não fará do que adensar-se até ao último verso, onde já aflora a “mão que nunca lerá José Saramago”. O que, de resto, apenas sai reforçado pela referência a Montaigne, que crava neles a qualidade “ondulante e diversa” com que o francês descreveu o homem. Eis, portanto, quase um paradigma para a situação daquele que fala pelo poema. A morte e a inviabilidade da vida (na sua incapacidade de ser fixada, ou simplesmente fruída) convergem para alguém que, mais do que elevar-se acima do tempo, o sofre.

Conforme defende, de forma modelar, Silvina Rodrigues Lopes, espaços como o da taberna salvam-se de constituírem alegorias porque se tornam “pedaços de sensações que apagam as histórias que os poderiam demarcar” (p. 197). Motivo pelo qual aquele enquadramento nem se diaboliza, nem se eleva a uma condição mitificadora que está claramente vedada pela razão medida dos versos — mesmo se eles assentam em experiências, ou na recriação delas, marcadas pela disrupção e por estados anímicos vizinhos da abjecção e da náusea. O “conluio/ diário de taberna” (p. 11) explicitamente denuncia a venalidade daquele suposto altar, através da assunção do ar consumido que por ali circula. A taberna é, então, apenas um dos espaços eleitos para a problematização do que é, no fundo, uma só questão — “Porque isto/ que não passa, sabemo-lo bem, é a vida// ou a morte, uma perda que dura/ e não se apaga assim, sob um cerco de navalhas ou de inúteis, vigorosos/ sentimentos.” (p. 43) A sequência “a vida// ou a morte”, apesar do artifício rítmico e gráfico da mudança de estrofe (ou também por ele), demonstra-no-lo. Vida e morte são a mesma causa. O ritmo, a posição dos vocábulos, no tecer e articular da frase e do verso, dão a forma harmonizada e a musicalidade a um caos nunca enjeitado, nunca sobremaneira buscado. Quanto aos vivos, eles são descritos como “mortos imperfeitos” (p. 103). Mas assim como a morte é “essa certeza improvável” (p. 48), também a vida é o indizível. Não no sentido de um excesso de dados e empenho pessoal do sujeito num projecto que o deixe assoberbado, mas pela inviabilidade das definições mais absolutas e positivas do que ela seja — “O resto, a vida, fica para outra vez.” (p. 37) Porque não há como abarcá-la, como dizê-la. Retomando as palavras de Sartre, dir-se-ia que Manuel de Freitas é um poeta autêntico porque a perda que a sua poesia tão amplamente tematiza é levada até às últimas consequências. Isto é: o ponto em que a morte se ausculta, com lucidez e sem dramaticidades deslocadas, no pleno pulsar da vida. O que dá sentido ao vivido enquanto projecto congeminado num horizonte parco que, necessariamente, trava a totalidade da expansão, mas também concentra nos momentos efectivamente experienciados o fulgor possível de uma determinada clarividência.

Sunny Bar

 não é a primeira antologia que se realiza da poesia de Manuel de Freitas; é, na verdade, a quinta. Cabe, no entanto, referir que esta recolha, organizada por Rui Pires Cabral, é a segunda editada nestes moldes em Portugal. A primeira colectânea antológica da poesia do autor foi organizada pelo poeta e crítico espanhol José Ángel Cilleruelo: 

El Cielo del Occidente

 (Calambur, 2004). A seguinte viu a luz do outro lado do oceano, por mão do poeta e crítico brasileiro Luis Maffei: 

Poemas de Manuel de Freitas, Portugal, 0

 (Oficina Raquel, 2007). Maffei foi, ainda, responsável pela mais recente antológica do poeta: 

Manuel de Freitas — Ciranda da Poesia

 (EdUERJ, 2014). Entre nós, publicou-se, antes de 

Sunny Bar

A Última Porta

, com selecção e posfácio de José Miguel Silva (Assírio & Alvim, 2010). Sem querer fazer uma tempestade num copo de água com esse simples dado, talvez não seja um acaso que todos os organizadores das referidas obras fossem poetas. E, possivelmente, não menos significativo, em dois casos poetas-críticos. Em relação a esta última estirpe, como diz o poeta irlandês David Wheatley (também ele um representante da espécie), “existe a tentação de ler o hífen como um sinal de subtracção”. Mas é certo que a leitura selectiva e necessariamente opinativa de um poeta (crítico ou não) será, com grande probabilidade, uma operação de interesse acrescido. Pese embora aquilo que T.S. Eliot apelidou (com acrimónia) de “

workshop criticism

”, ou seja, uma visão afunilada e paroquial da poesia dos outros praticantes dela, não é difícil conceber para estes poetas e críticos uma visão peculiar e lúcida da poesia de um outro poeta.

No caso de Rui Pires Cabral, as posições e as escolhas não se explicitaram, ao contrário do que sucedeu com José Miguel Silva — ainda que este resumisse as suas opções com uma característica secura epigramática: “Sobre a selecção dos poemas não tenho muito a dizer. Escolhi simplesmente os que me parecem melhores, com toda a subjectividade própria duma ciência tão inexacta como é a do gosto literário.” Em Sunny Bar, Rui Pires Cabral não fez acompanhar os poemas por si escolhidos de quaisquer palavras justificativas ou que evitassem esse protocolo. (O exemplar posfácio de Silvina Rodrigues Lopes fornece um contraponto crítico que ostenta a marca da invulgar penetração daquela ensaísta.) Se poderá lamentar-se que Rui Pires Cabral não tenha dito mais, há, por outro lado, que arriscar alguma coisa e pensar num poeta que encontrou a sua bússola em certo refreamento expressivo e no controlo da subjectividade que tão discretamente se acende na sua poesia.

Os poemas antologiados compreendem-se entre o livro de estreia de Freitas, Todos Contentes e Eu Também (Campo das Letras, 2000), e Ubi Sunt (Averno, 2014). De fora ficam algumas plaquettes, edições de autor e publicações de circulação mais ou menos restrita. O que não impede que Rui Pires Cabral tenha recolhido composições provenientes de 25 livros diferentes. Uma produção que não se pode dizer que seja habitual num poeta estreado há 15 anos e na qual é possível detectar tendências evolutivas, como as estudadas pelo ensaio de Silvina Rodrigues Lopes que encerra Sunny Bar — “o desaparecimento de um certo tipo de ironia que se vai dando em livros posteriores” (p. 197) —, mas também linhas de força que percorrem toda a sua escrita — “noite e música são carne das palavras, e não apenas a resposta auto-hipnótica à vontade de esquecimento” (p. 190); “Qualquer expressão reconhecível trazida para o poema vem atraída pelo seu movimento descontextualizador, pela perturbação dos vínculos a um antes referenciável” (id.).

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