Um penetra de festivais numa gloriosa despedida da adolescência

Desde que as circunstâncias o levaram a entrar sem pagar em Coachella, Marcus Haney especializou-se em ser penetra de festivais. Furou mais de 50, sempre recolhendo as imagens que compõem o documentário No Cameras Allowed, o seu rito de entrada na idade adulta.

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Marcus Haney: “Nada de demasiado complicado [furar festivais]. Só muita paciência e confiança” DR

No trailer preparado pela MTV para No Cameras Allowed, o feito de Marcus Haney ao infiltrar-se em mais de 50 festivais de música sem pagar um tostão parece sugerir a glorificação de um herói numa época em que a cultura, sempre que digitalmente possível, não se paga. Para a geração dos downloads e dos streamings a troco de uma mera ligação à Internet, Haney dá o passo seguinte e aplica a mesma ideia de gratuitidade em relação às maratonas de concertos. Olha-se para o trailer e somos levados a acreditar que No Cameras Allowed será algo na linha das ardilosas operações montadas por Daniel Ocean na série Ocean’s Eleven ( Twelve , Thirteen …). Mas a verdade é que o expediente de Haney não é tão ardiloso – passa, acima de tudo, por uma falsa transpiração de confiança sempre que, num festival, passa pelas barreiras de segurança como se o seu lugar fosse aquele, dentro do recinto, no backstage ou junto do palco. Visto em filme, parece fácil, quase.

Embora tudo isso esteja no filme, ressalva Haney, tal imagem de guia prático passo-a-passo de como ser penetra em festivais de música é da inteira responsabilidade da MTV. No seu entender, há todo um lado humano em No Cameras Allowed que lhe dá outro berço. Em vez de Ocean’s Eleven, pense-se então em Ferris Bueller’s Day Off [O Rei dos Gazeteiros, em português]. “Claro que as partes excitantes de passar pela segurança e todos esses elementos estão no filme”, admitiu Haney ao PÚBLICO aquando da sua recente passagem por Lisboa a convite do TalkFest, “mas uma das coisas que me dá realmente gozo é que o público pode esperar e encontrar esse filme, mas confronta-se também com um lado muito pessoal.” É precisamente o lado pessoal a sobrepor uma narrativa coming-of-age ao tom de epopeia festivaleira. Daí Ferris Bueller, daí o filme de John Hughes. À medida que Haney salta vedações ou ludibria seguranças, a relação com família e amigos vai engrossando e dando forma a um quadro de gloriosa festa de despedida da adolescência. Depois disto, do forçar a mão de comportamentos tidos como recrimináveis – por mais do que uma vez é apanhado na sua incursão nada oficial – espera-o a idade adulta.

Um festival igual a 50
Tudo começou em 2010, era Marcus Haney “um virgem de festivais”. Com as suas bandas preferidas, os seus amigos mais próximos e a rapariga por quem andava embeiçado a caminho de Coachella, um dos pontos altos do calendário musical nos Estados Unidos, os bolsos vazios de Haney não o demoveram de também se fazer à estrada e improvisar uma forma de entrar. “Fui com um amigo, vestimo-nos completamente de preto durante a madrugada, caminhámos ao longo do perímetro do recinto, vimos onde podíamos saltar uma vedação, estudámos a movimentação da segurança, percebemos qual era a altura certa para saltar e corremos para debaixo de um camião no parque do backstage. Depois esperámos nove horas, os portões abriram, começou a haver muita gente a circular e misturámo-nos.” Salvos por um par de barras de cereais e bebidas energéticas, ao fim das nove horas caminharam com o coração em sobressalto e ao passar a primeira barreira de segurança não foram impedidos de prosseguir mas antes saudados com um “bom dia”.

A partir deste momento, Marcus Haney, que ia munido de máquinas fotográficas e de filmar, com o pulso cheio de pulseiras de todas as cores, comportou-se como se fosse um profissional da imagem e apresentou-se sempre no fosso dos fotógrafos para captar imagens de gente como Jay-Z, Mumford & Sons ou Edward Sharpe & the Magnetic Zeros. No final da experiência, coisa a roçar o impossível, quando partilhou as fotos online acabou por ser contactado pelo festival Bonnaroo, pedindo-lhe a utilização da sua imagem de Jay-Z na promoção do festival. E tomado o gosto pela adrenalina da situação e pela consciência súbita de que mesmo os grandes festivais eram “penetráveis”, Haney voltou a por-se a caminho, entrando, desta vez, pela porta do backstage com toda a desfaçatez e simplicidade. Foi então que percebeu que de telemóvel encostado ao ouvido e com o ar de enfado de quem foi enviado à força para trabalhar num festival, à vista de toda a gente, a sua presença não autorizada aumentava exponencialmente as probabilidades de ser bem-sucedida. Ao mesmo tempo, tentava ganhar confiança com os seguranças – conhecendo-lhe a cara, já ninguém procuraria nos seus pulsos a acreditação em causa. Foi isto que contou no auditório do ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão), na mais recente sessão do TalkFest – por onde já passaram The National e Ney Matogrosso, e cuja próxima iniciativa, a 10 de Novembro, contará com os alemães Guano Apes.

Ao fim de dois festivais, Haney estava viciado e diante de cada novo cartaz que o entusiasmava fazia a trouxa com os mesmos objectivos: fotografar e ouvir as suas bandas preferidas em palco, infiltrar-se sem pagar a entrada. Aos poucos, reunindo todo o material, foi percebendo que tinha um filme só à espera de ser montado. Experimentou primeiro montar uma curta-metragem sobre a sua passagem pelo Bonnaroo e conseguiu fazê-la chegar aos Mumford & Sons. Como paga, recebeu um convite da banda para os acompanhar em Glastonbury e em digressões posteriores. Ficou amigo do grupo inglês ao mesmo tempo que se via perante um dilema: acompanhá-los na estrada ou realizar os exames finais da sua licenciatura. Era, no fundo, um braço-de-ferro curioso e definidor da sua vida – terminava os seus estudos e seguia para uma busca convencional por um primeiro emprego ou aceitava um trabalho remunerado que funcionaria como primeira etapa de uma possível carreira na fotografia. “O que é que vocês teriam feito no meu lugar?”, pergunta no filme, com um esgar que deixa adivinhar a escolha.

Essa partilha de intimidade com os Mumford & Sons levou-o a perceber a fúria gerada pelo seu filme – dos directores de festivais irritados pela possibilidade de se multiplicarem as tentativas de entrada à socapa, mas também daqueles que vêem assim os seus truques expostos e se queixam que, de futuro, serão mais facilmente apanhados. Nas perguntas e respostas do TalkFest, Haney explicou que todos os festivais estavam esgotados e, portanto, não “roubou” nenhum possível encaixe financeiro às organizações. Por outro lado, a proximidade com a banda inglesa, levou-o a ver de perto o quão importante é para uma banda ser devidamente paga pelo seu trabalho. “É uma loucura o quanto estas bandas trabalham no duro e a menos que tenham um sucesso explosivo mal conseguem atingir o break-even numa digressão”, diz ao PÚBLICO. Também a participação financeira da MTV na fase final de pós-produção foi vital para custear o processo e os direitos de autor a todos os artistas cuja música anima No Cameras Allowed.

Talvez por isso, Haney passou a aplicar os seus talentos noutras situações: já entrou nos Grammy sem ser convidado e furou um discurso de Obama, acabando a apertar-lhe a mão. “Nada de demasiado complicado”, ri-se. “Só muita paciência e confiança.”

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