Sonata de Outono

O leitor ficará absolutamente persuadido por esta nova tradução do grande clássico de Jane Austen

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Jane Austen: um dos patrimónios mais seguros da narrativa ficcional

Esta é uma nova Persuasão. O leitor ficará absolutamente persuadido (passe o trocadilho) pela tradução de Rogério Casanova, que empresta o conhecido brilhantismo à versão do grande clássico de Jane Austen. Casanova assina ainda um posfácio que transporta consigo a marca inconfundível do crítico-prodígio.

Não é apenas pelas suas qualidades intrínsecas que os romances de Jane Austen, e a sua autora, se destacam de forma tão decisiva no terreno fértil da ficção inglesa da primeira metade do século XIX (e no contexto mais vasto da literatura universal, decerto). Se a obra de Austen surge como um dos patrimónios mais seguros da narrativa ficcional, acresce que cabe à autora o curioso galardão de uma posição de quase neutralidade em relação às dinâmicas nascidas dos movimentos estéticos seus coevos. Quase, note-se, porque Austen — praticamente da mesma idade de Wordsworth e Coleridge — não vivia alheia aos ventos do seu tempo — “A conversa da noite anterior não o dissuadiu de procurar de novo a sua companhia; e conversaram, mais uma vez, sobre Walter Scott e Lord Byron, e, tal como antes, revelaram-se tão incapazes como quaisquer outros dois leitores de chegar a um consenso sobre os respectivos méritos de ambos” (p. 108). Há mesmo uma carta da autora em que esta se descreve sem nada que fazer (coisa rara), por ter já remendado o seu saiote e lido O Corsário de Byron. Mas para cada aceno ao romantismo, há uma citação de Alexander Pope, ou uma alusão velada a Matthew Prior. Essa dieta solidamente setecentista — Johnson e Boswell são outra constante — terá nutrido o racionalismo de propósitos e a firmeza artística de Jane Austen, nada permeável a delírios sentimentais. Segundo um crítico, os romances de Austen representariam mesmo “uma feminização dos romances de Fielding”. De resto, um dos poetas de eleição de Austen era William Cowper — um autor, curiosamente, situado na encruzilhada entre neoclassicismo (ou época augustana, na nomenclatura inglesa) e romantismo. Num momento de fugaz desafogo financeiro, Jane Austen decidiu, por exemplo, pôr de parte o dinheiro que lhe sobrava para comprar as obras de Cowper. Além disso, o seu Northanger Abbey constitui uma refinada sátira ao romance gótico. Curiosamente, tanto Northanger Abbey como Persuasão decorrem em Bath, cidade termal onde a autora viveu alguns anos e que conhecia bem. E embora aquele romance tivesse sido o primeiro que Austen escreveu, foi editado no mesmo volume de Persuasão, o último que a autora escreveu de forma completa — embora, como lembra Rogério Casanova, não seja “uma obra acabada no mesmo sentido que os cinco romances prévios” (a autora submeteu os dois últimos capítulos a diversas revisões e emendas).

Sir Walter Elliot é um baronete, como Sir Thomas Bertram, em Mansfield Park. Isto é, encarna aquela pequena aristocracia, limitada pela escala social de um complicado sistema de castas, mas também pelo carácter, notavelmente tacanho. Espécimes muitas vezes estudados pelo olhar impecável de Austen, o nobre e o pequeno nobre são uma peça essencial (quase exclusiva) do jogo social que está permanentemente em apreço nos seus romances. É nesse microcosmos, com os seus preceitos e gestos codificados, que se explana a ficção de Jane Austen. E é também nos interstícios desse sistema sociocultural que se tece o enredo de Persuasão. Anne Elliot não é propriamente uma vítima — no sentido mole do termo —, mas o efeito secundário de um quadro mais geral. Ao contrário da protagonista epónima de Ema, que, segundo Austen, era “uma heroína de quem ninguém senão eu irá muito gostar”, Anne, ainda nas palavras da autora, era “quase demasiado boa”. Foi devido à pressão social, epocal e, sobretudo, financeira, que a protagonista foi persuadida por Lady Russell a não casar com o Capitão Wentworth, por este ser, alegadamente, um mau partido. Ou um partido insuficiente no encadeamento da teia de obrigações e futilidades que o microclima social tinha por essenciais. Daí que, como agudamente aponta Casanova, “ocorrerá a mais de um leitor que Dissuasão talvez fosse um título mais adequado” (p. 255). Quase dez anos antes do tempo do romance, Anne, filha do meio de Sir Walter, foi, então, persuadida — ou dissuadida, segundo a proposta de Rogério Casanova — a cancelar o seu noivado, e a encarnar o aviltante papel de solteirona. Quando a acção começa, a protagonista tem 27 anos; mas devemos aplicar a este número a aritmética inflacionária de que fala Casanova. À luz da época em decorre a acção de Persuasão, aquela idade é quase uma sentença de degredo. O que, naturalmente, dota de maior acuidade o sofrimento da personagem e espicaça as peripécias do enredo, de complicação em complicação, o que cada vez torna menos viável qualquer alteração na rota desditosa de Anne.

“O céu dela é um pouco baixo, algo vazio, mas que delicadeza na pintura dos sentimentos! Se nenhum demónio maior habita em Jane Austen, há, pelo contrário, uma compreensão infalível do outro, jamais debilitada.” Eis como André Gide por pouco não caía na armadilha de uma leitura servil da biografia da autora. Uma existência pouco recheada de acidentes — mas que não seria sensato comparar ao regime quase monacal de uma Emily Dickinson, gerações depois, e do outro lado do Atlântico — tem levado muitos a diminuir o alcance da produção da escritora. No entanto, o seu realismo (em tempos românticos), a serenidade clássica das suas composições, a arquitectura romanesca por ela posta em funcionamento, especialmente nos romances tardios, são contradições vivas desse falso pressuposto limitador. Quando, já na era vitoriana, Tennyson visitava os lugares em que decorre Persuasão, insistiu em ver o lugar de Lyme onde se dera a queda de Louisa, no “chão do Cobb” (p. 110). Como se ela realmente lá tivesse estado, a impedir, mais uma vez, a união de Anne e do Capitão. Se este não é o sinal do génio, o que será?

Persuasão

 integra e conclui a fase final, a mais maturamente consumada, da ficção de Jane Austen. Esta zona da sua obra atingiu um fulgor sóbrio, plenamente adulto. Juntamente com 

Ema

 e 

Mansfield Park

, o derradeiro romance da autora encerra uma produção assombrosa que, em escassas décadas, foi capaz de se tornar um ramo notável na árvore genealógica do romance. Como escreve Casanova,

 Persuasão

 “exibe quase todos os sintomas do livro terminal: é curto (…); é resolutamente outonal, não só no período de tempo em que a acção decorre, como na atmosfera soturna que o permeia; há um tom invulgarmente abrupto e abreviado em algumas transições; a comédia é mais crua, as caricaturas surgem com traços mais carregados, o comentário moral é mais explícito e frequente (e portanto mais desnecessário), a sátira, a espaços, parece mais intolerante; e contém um número suficiente de elementos inéditos que quase permitem lê-lo como uma refutação exasperada das obras anteriores” (p. 254)

A escrita de Persuasão decorreu no meio de fortes contrariedades, sobretudo se compararmos as condições de escrita deste romance com as de Ema. Primeiro, a doença do irmão, Henry, com certa gravidade; depois, o colapso financeiro deste; mais tarde, a doença da própria autora. O que motivou a publicação póstuma do romance, que Austen sempre chamou The Elliots (o título que conhecemos foi atribuído posteriormente). A todos aqueles contratempos, Jane Austen resistiu com o costumado estoicismo, produzindo aquele que muitos vêm como o pináculo da sua construção romanesca. Sem o virtuosismo de obras como Orgulho e Preconceito ou Sensibilidade e Bom Senso, que têm a vivacidade da juventude e a intrepidez da romancista que está a atingir a sua forma máxima, Persuasão encontra a nota dominante na sua solidez. Até pela concisão dos traços dos caracteres e pelo desenho dos antagonismos. Mais sombreados, os elementos oponentes à protagonista são submetidos a um olhar mais impiedoso, irremediavelmente amadurecido — “Quanto à triste desgraça em si, duas senhoras sensatas e equilibradas, que reservavam os seus julgamentos para factos confirmados, só podiam encará-la de uma forma: foi portanto consensualmente decidido que tudo o que acontecera fora resultado de muita imprudência e leviandade; que os efeitos tinham sido alarmantes” (p. 126).

A estrutura quase circular do romance não o torna o conto de fadas que, apenas aparentemente, ele é. Desde logo, porque o círculo é imperfeito. As coisas não voltam ao que eram no princípio do romance — um simplismo incompatível com a sofisticação composicional de Jane Austen —, mas recuam ao período que antecedeu e condicionou o começo de Persuasão. As dificuldades e os entraves posicionados diante da protagonista — novos pretendentes que se equacionam de ambos os lados do casal em protótipo, encontros e, sobretudo, desencontros — acabam por se dissolver, com o avanço do enredo, e a situação final percepciona-os a uma luz totalmente distinta. No entanto, a fórmula encontrada para dar por encerrado o romance é suspeitosamente ambígua. Parece o sintoma de um apaziguamento assente em base incerta, uma tensão que nunca se resolverá — “Ela orgulhava-se de ser esposa de um homem da Armada, mas sabia que o preço a pagar era a preocupação constante, pois pertencia agora a uma classe mais reconhecida pelas suas virtudes domésticas do que pelo prestígio nacional” (p. 249).

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