O piano e as vozes como instrumentos de acção

De regresso ao cenário inicial, Tiago Sousa apresenta quarta-feira no Teatro Maria Matos o seu Coro das Vontades, agora passado para disco, alimentado pela mesma ideia visceral de rejeição. Para ajudar à festa, estreia em palco os inéditos de um álbum na forja, intitulado Um Piano nas Barricadas.

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Não é de agora que Tiago Sousa parte para um disco com um sólido fundamento teórico que depois reduz a uma série de peças belas e minimais para piano.

Foi assim com Walden Pond’s Monk, quando se baseou no retiro de Henry David Thoreau numa cabana junto a Walden Pond, um lago no Massachusetts, para ele próprio procurar num sétimo andar do Barreiro a sua declaração de independência pessoal. Foi assim com Samsara, quando verteu para as teclas do piano a assimilação de literatura hindu dedicada ao ciclo da vida e prenhe de antagonismos. E foi também assim quando, em 2012, chamado pelo Teatro Maria Matos, em Lisboa, a compor uma peça inspirada nos Complaints Choir finlandeses (uma forma organizada de tratar os valituskuoro, vozes espontaneamente juntas em queixas comuns ou dispersas), o queixume foi trocado por um desejo de acção, transformando-se em Coro das Vontades, apresentado então em estreia no Dia do Manifesto.

Para a composição, Tiago Sousa deveria então partir de um conjunto de 50 manifestos de estilo e temática livres enviados para o Maria Matos a pedido do teatro lisboeta. Chegaram-lhe reivindicações, mais ou menos poéticas, mais ou menos concretas, um ruído de fundo persistente de recusa da actual classe política. “Quando me deparei com aquele material todo, achei super entusiasmante”, recorda Tiago Sousa. “Mas tinha uma dificuldade: como é que ia passar aquilo para a música.” Chegou a sentir o mesmo impulso dos discos anteriores, de deixar que o piano caminhasse sobre as palavras, empurrado pelas ideias, não se furtando de abordar as temáticas propostas mas sem obedecer a qualquer fio narrativo. Não demorou a abafar esse impulso. “Neste caso, a palavra tinha um papel a jogar e tinha de abordá-la como elemento chave do projecto, coisa que nunca tinha feito antes”, confessa.

Colocando o pé num solo mais arenoso, Tiago Sousa pediu ajuda a “uma ilustre desconhecida”, Joana Rosa, combater a sua “veia programática”. “Sabia que ela ia introduzir um elemento para me ajudar nisso e não me fazer correr o risco de fazer uma espécie de canção de intervenção do século XXI. E foi exactamente isso que fez.” A partir do momento em que o trabalho sobre os textos passou a ser a dois, o processo de construção tornou-se num combate de ideias, cada um corrigindo os desvios do outro e garantindo que uma voz pessoal não se sobrepusesse ao coro que ia assomando nas composições. “Daí que todo este trabalho seja feito em cima de um diálogo entre diferentes partes, entre os textos que nos chegaram e as ideias que nos vieram do Maria Matos, mais as da Joana; espero que o resultado saia muito mais enriquecido do que se fosse eu sozinho com as minhas indagações.”

A necessidade de combater a abstracção de uma música delicada, tecida na esteira de Debussy ou Chopin mas criada para o próprio Tiago Sousa interpretar com outros músicos, e não para abastecer um cânone pianístico, vinha já reclamando um peso crescente da palavra nas suas actuações, expondo de forma mais clara as suas fontes literárias de inspiração. “A integração da palavra”, confirma, “vinha precisamente de sentir as ideias tão produtivas e profícuas que às vezes ficava com pena que se esgotassem nessa abstracção da música.” Mesmo que um verso isolado, enxertado numa sumptuosa sobreposição de três discursos melódicos (piano, violoncelo e clarinete), possam dizer apenas “a terra treme” numa tensão cada vez mais desesperada e urgente até se calar esgotada no final do primeiro tema. É quanto basta.

Os outros
Ao seleccionar alguns dos manifestos recebidos e trabalhados em Coro das Vontades, Tiago Sousa soube sempre que estaria, em simultâneo, a realizar uma triagem crítica e ideológica – “mas que de nada serve se não for feita com generosidade”, ressalva – daquilo que lhe chegara. Mas essa questão nunca foi encarada como um problema, uma vez que a ideia de “ser a voz daqueles textos” não era um papel que quisesse reclamar para si. Em vez disso, defende, a sua função seria a de dialogar com os textos – com os quais podia ou não concordar – e apresentar esse diálogo em disco ou em concerto, procurando prosseguir com uma conversação ou troca de ideias com o público. A partir dos textos recebidos, aliás, também Tiago e Joana redigiram algumas respostas ao diagnosticarem uma premissa transversal na participação popular, reveladora daquilo que Tiago define como “impossibilidade emancipatória em relação às formas que nos vão coagindo, e que começa com a nossa demissão do papel interventivo na sociedade enquanto comunidade”.

Quer isto dizer que era comum nas missivas um tom acusatório e reivindicativo sempre dirigido “aos outros”. Quem escrevia, prescrevia aos destinatários (e a quem quisesse ouvir) receitas para uma maior ou menor revolução, recomendando formas de acção em que nunca se incluía. Uma espécie de visão redutora da democracia: colocada a cruz no boletim de voto, o destino fica entregue nas mãos de quem sabe. E se não sabe, dê lugar a outros que saibam. Sempre com uma cisão absoluta entre o cidadão e o poder.

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No concerto de 8 de Abril, Tiago Sousa recupera peças do seu passado e antecipará o álbum que há-de chegar mais para o fim do ano DR

Tiago Sousa recorre à estante da literatura teórica e recupera Jacques Rancière com a teoria da “emancipação do espectador”. Pegando no confronto entre acção e passividade, Tiago e Joana devolvem a provocação ao seu público. A obra, o Coro das Vontades, serve por isso para inquietar o espectador e convidá-lo a interpretar e pensar sobre o que lhe é proposto, procurando roubá-lo da sua posição confortavelmente sentada, instalar-lhe uma bomba relógio que leve dentro de si e acabe por deflagrar e produzir um qualquer efeito (mesmo que ao retardador). “Claro que não consigo prever nem controlar – nem seria desejável”, comenta o compositor, “o que cada pessoa fará com aquilo que leva para casa, mas vai pegar nisso, juntar às experiências que teve e construir a sua própria narrativa. Só nesse momento a obra cumpriu o seu ciclo.” Para que a palavra não acabe sufocada por notas a mais, Tiago compôs um conjunto de canções simples, ainda que não lineares, tomadas pela urgência natural emanada das palavras.

Seja pela música espectral que acompanha as vozes simultâneas que debitam uma poética viagem de transportes públicos e uma queixa irada tanto contra a precariedade e o capitalismo como contra a janela em frente, os movimentos de luta pela paz, os apresentadores de televisão matinal ou o cheiro a urina seca num beco de Lisboa. Seja pela imensamente bela abordagem a canções como “Cinco Crimes por Dia, Amor Meu, e Seremos Nossos” e “Antígona”, de arrebatadora qualidade dramática, facilmente imagináveis nas interpretações menos afadistadas de uma Cristina Branco, por exemplo. Duas canções geminadas, aliás, pela sua ideia comum de rejeição retirada dos manifestos: a recusa de uma lei inventada por alguém que não honra “a lei suprema a todas as outras leis – um sentido de respeito pela vida humana” (“Antígona”) ou de “uma norma vigente que estabelece o que é certo e o que é errado” (“Cinco Crimes”).

“E há uma série de rejeições que faço a priori, porque se a minha música não quer ficar no cânone da música erudita e especializada, por outro lado também não se dedica inteiramente ao entretenimento”, acrescenta Tiago Sousa. Estamos numa pequena tasca junto ao Largo do Carmo, em Lisboa, e por cima da voz do músico uma televisão amplifica uma senhora histérica que grita “quer ganhar mil euros, senhor Zé?” e, poucos segundos depois, a recordação do Pequeno Saul a berrar “o bacalhau quer alho”. Não, aquilo que Tiago Sousa não é entretenimento.

Nas barricadas
A 8 de Abril, voltando ao Maria Matos, Tiago Sousa não reordenará apenas as peças do seu passado, recuperando peças de Walden Pond’s Monk e Samsara, colocando-as lado a lado da apresentação integral (e distribuição gratuita do CD ao público) de Coro das Vontades. O músico antecipará igualmente o álbum que há-de chegar mais para o fim do ano intitulado Um Piano nas Barricadas, composto por temas para os filmes Bibliografia, de Miguel e João Manso, e Canal, de Rita Nunes, assim como um dueto com Tó Trips (Dead Combo) intitulado “A Conquista do Pão”. Tudo ao abrigo de uma outra ideia de rejeição: “Há uma dimensão de resistência quando decido pegar num instrumento com tradição virtuosística e académica como o piano, fazendo-o de forma autodidacta, assumindo sempre que era imperfeito enquanto intérprete e colocando essas imperfeições nos discos – o piano que está desafinado, a nota um bocadinho ao lado –, rejeitando a autoridade que surge na música que vem do jazz, da erudita ou contemporânea, que se arroga uma ideia de especialização muito vincada, quase científica.”

Tiago entrega-se, por isso, a uma demanda romântica por “um gesto primordial que se perdeu ao longo dos tempos”, da música como auto-recriação e não como meio de fabricação de máquinas interpretativas perfeitas. E coloca o seu piano nas barricadas, figurativamente, da mesma maneira que pianos têm surgido de forma literal em protestos na Polónia, nos Estados Unidos, na Itália dos anos 70 quando, vencida a polícia num motim e instituída uma pequena bolsa de anarquia, um piano apareceu do nada fazendo ressoar Chopin. Ao lado da luta e da confrontação, clama o músico, o piano simboliza a poesia. E a capacidade de sonhar ainda em construir algo belo, virgem, impoluto, onde antes só existia uma vontade física de dizer não.

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