Não nos rendemos

A obra-prima de Lars Gustafsson, um portento de profundidade, numa nova tradução menos próxima do melancólico tom original

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Lars Gustafsson chamou ao ciclo de cinco romances que concluiu com A Morte de um Apicultor “as fendas na parede”, e é de facto uma vida que se entrevê aqui por entre as fissuras da normalidade ANNETTE POHNERT

O sueco Lars Gustafsson (n. 1936) é um dos mais reconhecidos escritores europeus. Estreou-se na literatura bastante jovem e poucos anos depois já ocupava uma posição central na vida intelectual sueca, como autor, crítico literário e pensador. Com uma extensa produção literária (romances, poesia, ensaios e livros de viagem), e um conhecimento enciclopédico — as suas dissertações sobre vários temas (desde a semântica à ciência aerostática, dos filósofos mais herméticos aos mais obscuros autores) são exemplo disso —, os seus livros caracterizam-se pela aparente facilidade com que aborda temas existenciais, sempre envoltos num encantamento sardónico que nunca deixa de desassossegar o leitor. A maneira como os temas são abordados, partindo de situações e de exemplos que aparentam uma estranha candura (mas ao mesmo tempo de uma profundidade atroz, de uma incisão cirúrgica), deixam perceber uma ironia que quase toca o cinismo.

A Morte de Um Apicultor — originalmente publicado em 1978 — é o último de um ciclo de cinco romances. Conta a história de um antigo professor primário que se reforma antecipadamente e que vive sozinho numa casa rural algures na Suécia. Abandona o contacto com os outros e tenta ter uma vida “normal” apesar das dores que há alguns meses o começaram a afligir. Pensa na possibilidade de ter um cancro, mas recusa-se a abrir a carta com os resultados da biópsia, e queima-a na lareira. Este gesto parece oferecer-lhe “uma réstia de esperança” que lhe deixará certa margem de manobra para continuar a viver. “Se esta carta contém a minha morte, recuso-a. Não devemos querer nada com a morte. Tive a sorte de aprender isto muito cedo, e é algo que me tem sido útil ao longo da vida.”

Toda a história é contada a partir de fontes externas: são três cadernos escritos em diferentes alturas e com assuntos dispares, encontrados após a morte da personagem. Através destes apontamentos, em que surgem como que aleatoriamente reflexões e historias curtas, o leitor acaba por saber dos momentos mais importantes da vida do antigo professor primário, numa espécie de parodia “ingénua” do género alemão do Bildungsroman. Este é um romance que reflecte profundamente sobre a existência, sobre o sofrimento e a dor, tendo como centro o “vazio” e a escuridão que nos preenchem: “A noite no fundo das pupilas é idêntica à noite que reina entre as galáxias.”

Lars Gustafsson chamou ao ciclo de cinco romances em que incluiu A Morte de Um Apicultor “as fendas na parede”. Ora é exactamente isto o que este romance oferece: a possibilidade de entrever através de certas fissuras uma “outra vida” da personagem (também as nossas angustias existenciais), aquela que está por detrás da aparência da normalidade. Aos poucos, e através de reflexões sobre o sofrimento provocado pela dor, sobre a (não) existência de Deus, ou sobre a (não) razão de existirmos, o leitor vai percebendo motivos obscuros em situações que quase todos nós já vivemos e sobre as quais talvez pouco tenhamos pensado. E é com a delicada precisão de descrições de paisagens idílicas do campo sueco que chegamos à pergunta “Mas o que é o Paraíso?” Para o antigo professor primário, é a ausência de dores; ele viveu no Paraíso e não sabia, o Paraíso é uma possível vitória sobre esse “sofrimento original” que carregamos desde o nascimento. “Aquilo que aprendi: não existe uma verdadeira saída para a vida. A única coisa que podemos fazer é adiar a decisão para o dia seguinte, com um pouco de habilidade e astúcia. Mas não há saída. Trata-se de um sistema fechado, e, no fim, só resta a morte. O que não é, de todo, uma saída.”

As duas únicas pessoas com quem a personagem tem contacto ao longo dos últimos meses de vida são dois rapazes que se interessam por ficção cientifica e para quem o antigo professor primário escreve uns capítulos de uma história. Essas histórias, que a uma primeira leitura podem parecer fora de contexto no romance, acabam por funcionar como metáforas da sua vida, da luta contra o sofrimento humano, reforçando a convicção de que, caso Deus exista, o homem deve ser a sua negação: “Se existe um deus, a nossa missão é dizer não.” Lars Gustafsson recorre varias vezes ao longo do romance, como se fosse um estribilho, à frase: “Recomeçamos, não nos rendemos”, que parece uma evocação do Maio de 1968, “Continuemos o combate”, nota Carl-Gustav Bjurström no prefácio à primeira edição em português (ASA, 1993), traduzida directamente do sueco — numa escrita que, diga-se, convoca mais a melancolia nostálgica (ou a nostalgia melancólica) tão característica das obras de Lars Gustafsson do que a actual edição cuja tradução, de Afonso Cruz, não foi feita a partir do sueco.

A Morte de um Apicultor é, sem dúvida, uma das grandes obras da literatura europeia do século XX.

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