O amor é uma coisa infecciosa

Num dia de Novembro de 1811, Heinrich von Kleist e a sua amante Henriette Vogel morreram por combinação prévia. Ele propôs-lhe o duplo suicídio. E a realizadora Jessica Hausner propõe-nos um filme que é tomado por ideias infecciosas.

Fotogaleria
Amor Louco casa o surrealismo com o romantismo germânico do século XIX
Fotogaleria
Amor Louco
Fotogaleria
Amor Louco
Fotogaleria
Amor Louco

Num belo dia de Novembro de 1811, Heinrich von Kleist e a sua amante Henriette Vogel morreram por combinação prévia.

Ele matou-a e depois matou-se. Se “tecnicamente” não foi um duplo suicídio, em espírito foi-o: ela queria, dispôs-se, aceitou, morrer com ele. Esta é a história narrada por Amor Louco, título que vem casar o surrealismo com o romantismo germânico do século XIX. A realizadora, a austríaca Jessica Hausner, de quem em Portugal já conhecíamos Lourdes (outro filme que permitia alguma ligação à memória surrealista, através do seu olhar mordaz sobre a religião e sobre os peregrinos como, por exemplo, os da Via Láctea de Luís Buñuel), começou justamente por aí, por esse “paroxístico” acto de amor que consiste em dois amantes quererem morrer juntos, pensarem na morte como a fixação definitiva do seu amor. “O propósito inicial”, diz Jessica, “era contar a história de um duplo suicídio na época contemporânea”. O destino de Kleist e Vogel apareceu-lhe depois, como ilustração perfeita do tipo de história que procurava, e só então Amour Fou se tornou um filme de época – até porque, nota Hausner, à partida não tinha nenhum interesse especial “nem em Kleist nem no século XIX”.

Uma das coisas especiais de Amor Louco é o seu tom, o declive desconcertante entre o profundo dramatismo da sua história, ou entre a profunda seriedade das intenções de Kleist (que entra no filme a convidar senhoras para morrerem com ele), e um certo ar de paródia, paródia do século XIX (ou das suas representações clássicas) e paródia do romantismo, que se desprende da encenação e de certos diálogos (justamente esse lado casual, mas muitíssimo “carregado”, da insistência de Kleist numa parceira para um duplo suícidio).

Jessica Hausner reconhece a importância que no filme têm “os elementos paródicos”, mesmo que torça o nariz à ideia de que Amor Louco seja uma paródia. Fala dela como “uma estratégia narrativa”, um meio, portanto, mais do que um fim, que também alberga a ideia do humor “como um escudo para a dor e para o dramatismo”. O tom, defende ela, parece mais cómico porque “não se trata de um ensaio e não procura qualquer explicação cultural ou psicológica” para a obsessão de Kleist. “É apenas a história de um homem que prefere a morte à vida”, resume. O que não impede que, nesse jogo com a tonalidade dramática da narrativa, o filme vá, à medida que avança, trabalhando a obsessão de forma progressivamente mais seca, mais fria, suspendendo o riso: “uma das coisas que pretendia era essa, extrair daqui, independentemente do humor, uma história de amor romântico em primeiro grau, suspender a distância que os elementos cómicos introduzem”.

Elementos cómicos que são, por exemplo, aqueles que descrevem o século XIX como ambiente de rigidez e formalismos sociais, as personagens evoluindo de sarau em sarau, de recepção em recepção, em movimentos coreografados e debitando diálogos plenos de “qualidade literária”. O que levanta, em primeiro lugar, a questão do artificialismo, a recusa explícita de qualquer naturalismo de reconstituição. Hausner diz que não acredita "em filmes históricos que pretendam ser realistas”, acha-os por norma “enfadonhos”. E portanto, sim, não concebia a ideia de filmar o século XIX sem ser recorrendo a um artificialismo absoluto. A frontalidade da maior parte dos planos, o jogo entre o primeiro plano e o fundo, as estudadas movimentações das personagens dentro de cada enquadramento – Amor Louco joga-se muito como um bailado em slow motion. Hausner refere que a inspiração para a concepção visual do seu filme veio menos do cinema do que da pintura, e que estava particularmente interessada no tipo de composição da pintura renascentista – “a perspectiva central, aquele eixo no centro do plano em função do qual se definem as margens do enquadramento e a relação entre a superfície e o fundo da imagem”. Em termos práticos, isso implicou o “arranjo” de cada plano, sobretudo aqueles mais povoados, com atenção aos ínfimos detalhes: “muitos ensaios, e nalguns casos muitos takes, porque era preciso que cada actor soubesse que gesto ia fazer e em que momento ia fazer”.

Essa descrição “formalista” do ambiente aristocrático do século XIX é “furada”, insidiosamente, pelas inúmeras menções aos novos ventos políticos (as “ideias francesas”, como dizem as personagens com um misto de inquietação e sobranceria) que se espalhavam pela Europa nesse princípio de século, uma vintena de anos depois da Revolução Francesa. É como se víssemos aquela sociedade a ser infectada por algo que ela ainda não percebeu que vai ser a sua destruição. “Era importante ter essas ideias políticas a circular pelo filme”, refere Hausner, que aprecia o uso do termo “infecção” para descrever a presença delas.

Foto
A realizadora austríaca Jessica Hausner

“Não estão lá para julgar, até porque as ideias mudam ao longo da História, mesmo o que é certo e errado, o bem e o mal, são noções em constante evolução; mas interessava-me usá-las para dar uma certa perplexidade, as personagens não sabem bem o que fazer com aquelas ideias e muito menos o que aquelas ideias lhes vão fazer a elas”. Mas essa “perplexidade” cria também um reflexo para a perplexidade, do próprio espectador em primeiro lugar, mas também de algumas personagens dentro filme, em face do ideário romântico exacerbado de Kleist. Ainda aqui, insistimos, a estratégia do filme é a “infecção”: assim como a pobre Henrietta vai sendo conquistada para o romantismo terminal de Kleist, também o espectador vai anulando a distância para com aquele propósito, acabando por aceitá-lo em todo o seu doentio esplendor. Se no estilo Amour Fou tem pouco que ver com os expoentes, bastante cínicos (como Haneke), do cinema austríaco contemporâneo, encontra-o por aí, nesse olhar, entre o cepticismo e um determinismo irredimível, sobre a natureza e a existência humanas. Hausner reconhece-se nesta afirmação, e defende o cepticismo como algo intrínseco à criação artística que “vale a pena”. Mas, sem usar o termo “misantropia”, defende que só se pode tentar filmar “o ridículo humano” com a “distância justa”, conservando a ligação entre as personagens e espectadores – “caso contrário, perde-se tudo”.

E que importância teve aquela que é provavelmente a mais célebre adaptação cinematográfica de Kleist, a Marquesa d’O dirigida por Eric Rohmer nos anos 70? “Foi o único filme que levei em consideração na preparação deste, gosto muito; mas é uma fantasia masculina, uma fantasia de Rohmer, imaginar que uma mulher pode ser violada e depois apaixonar-se pelo violador. Nenhuma mulher conseguiria filmar aquela história daquela maneira”.

Sugerir correcção
Comentar