Este dizer agreste

A.M. Pires Cabral volta à noite obscura da alma. Deixa que ela arda e, perante esse lume, questiona o seu próprio lugar, sem deixar de interrogar o cabimento de Deus no meio de tanto escuro

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Esta poesia está constantemente a salvar-se do carácter hierático e distanciador que facilmente poderia adquirir

O primeiro verso da poesia reunida por A.M. Pires Cabral em Antes Que o Rio Seque (Assírio & Alvim, 2006) imprime, na sua frase inaugural, três breves palavras que funcionam como um traçado preliminar para a sua poesia: “Desço à terra.” Inseridas nesse livro de 1974, chamado Algures a Nordeste (1974), só não formam um programa porque este autor e a obra que ele vem assinando, há mais de 40 anos, estuam para lá da planura de uma cartilha. E no entanto, a solidez do seu apego à terra, o vigor inteligente da sua ironia, o seu peculiar caminho electivo no solo da tradição cultural, a firmeza do trabalho com a língua portuguesa, enfim, fazem da sua produção um caso de coerência forte. Porque ela não é a simples manutenção dos temas, nem só o cuidado nas envolventes topográficas, tão-pouco exclusivamente as marcas de um rasgo estilístico individuado. O que a poesia e a ficção de A.M. Pires Cabral têm levado a cabo merecem o reconhecimento de uma coesão que é energia criadora. Mais do que uma imposição extrínseca, ela consubstancia um nexo fundador das suas realizações. Com certeza podemos constatar a presença marcadamente excêntrica (no sentido de “fora do centro”, embora a excentricidade na acepção de insólito seja marcante, sobretudo no plano ficcional) em livros como o recente A Navalha de Palaçoulo (Cotovia, 2015) ou recolhas de contos como Os Anjos Nus (Cotovia, 2012). Mas já o auto-retrato de grupo deBoleto em Constantim (1981) era subscrito “nós, os centrifugados, sugando a periferia”, num poema com o título significativo de Periferia. Na verdade, na sua poesia, desde, por exemplo, o título do seu segundo livro, Solo Arável (1976), até um título mais recente, que com ele parece comunicar, como Arado (Cotovia, 2009), a imersão na ruralidade é um dado indisputável. De resto, este último livro incorpora mesmo um núcleo de poemas intitulado Algures a Nordeste parte dois. Algo mais simples, ainda (mas nem por isso irrelevante), como outra escola encerrada nesse território do interior nortenho imprime a sua presença agastada em Gaveta do Fundo (Tinta-da-China, 2013). Mas que estes factos não impeçam a constatação de uma escrita capaz da lucidez necessária para não experimentar a queda num de dois possíveis extremos: enlevo cego ou demagogia panfletária. Nem a firme determinação da fórmula “assumir o Nordeste” (do já citado livro de estreia de Pires Cabral), quase epítome deste que é apenas um dos vectores possíveis de conceber para a sua obra, deve fazer esquecer o quanto esta poesia (se nos centrarmos nela) reconhece noutras fontes a sua motivação e os seus impulsos. Em A Noite em Que A Noite Ardeu, a terra estende a sua presença de forma distinta – “Eu que nunca rompi sandálias/ na estrada de Damasco,/ rompo-as agora extemporaneamente / nas veredas da noite.” Porque neste livro Pires Cabral segue um trilho que o leva a outra forma de entender a terra.

No seu mais recente volume poético, AMPC retoma, de certa forma, um trilho percorrido em Como se Bosch Tivesse Enlouquecido (João Azevedo Editor, 2003). Este, que começava com uma glosa de Job, fornece o modo de inquirição ao divino – e como que o fixa na sua forma mais exemplar – que é um dos tons de A Noite… Uma atitude que voltaria a estar em apreço na impressionante “Fala do Cordeiro ao Cutelo”, que abre As Têmporas da Cinza (Cotovia, 2008). A dimensão agónica da reflexão acerca do humano e do divino, que perpassa muita da poesia de A.M. Pires Cabral, tem intercalado com incursões assinalavelmente distintas. Pense-se na comparticipação de Deus na empresa “Douro SA”, em Douro: Pizzicato e Chula (Cotovia, 2004), ou nessa “pessoa acocorada e útil” onde o poeta vê “as proporções de deus”, em Arado (Cotovia, 2009). Quando, em A Noite…, A.M. Pires Cabral faz ecoar as palavras de Simão Pedro dirigidas a Cristo, não só se mantém fiel a essa mesma linha temática, como faz descer a atenção do leitor até ao ponto máximo da humildade, o chamado lava-pés. Mas apenas para, por fim, centralizar a reflexão no próprio sujeito do poema, com o despojamento e a derrisão que reforçam essa inflexão, nomeadamente nos últimos versos do poema (“Tu Mihi Lavas Pedes”) – “E me fazes engolir/ verso por verso/ as coisas levianas que por vezes/ me sobem à boca.” (p.32) Esta concepção do contacto entre o humano e o divino quase autoriza que se fale e uma religiosidade regiana, por tão sofrida e arrancada a ferros à física das coisas do mundo, à sua feral dimensão profana. Uma profanidade dada pela noção de “subir à boca”, como se de um refluxo se tratasse.

Noite Obscura da Alma, princípio poético e postulado teológico de São João da Cruz, é presença conhecida da poesia de A.M. Pires Cabral. Um dos núcleos de Como se Bosch Tivesse Enlouquecido chamava-se Ao Contrário de Juan de Yepes (mais conhecido por San Juan de la Cruz). E Noite Escura, de Cobra-d’Água (Cotovia, 2011), via o sujeito saído para a noite, “furtivo como um lobo”, resoluto na cobrança do que dizia ser-lhe devido, mas “prestes a apear[-se] da noite”. Isto é, em posição de investida e tensão. Não se trata, portanto, de um sujeito passivo e em meditação, mas de alguém que assume a postura do arco pronto ao disparo. O sangue presente naquele poema tipifica exactamente esse estado. E é essa a postura de A Noite em Que a Noite Ardeu. Assumindo uma estrutura quase narrativa, em que “Tudo começa como quem não quer a coisa: uma faísca” (p.10), o livro dirige-se à noite enquanto conjuntura de uma auto-análise sem tréguas. Uma descida ao mais fundo de si, em que as tonalidades de escuro se modulam, desde a “noite intensa, inteiriça,/ sem freta por onde entre o alento/ de uns pingos de luz” (p.35), chegando ao paroxismo de antítese num “clarão desta treva” (p.9), ou na “radiosa escuridão” (p.13). Num poema chamado O Coração da Noite, o sujeito concebe-se a si mesmo “como o fogueiro/ duma velha locomotiva a vapor” (p.40). Com o que lança as acendalhas de calor e luz que emanam daquele maquinismo que nos pode fazer lembrar Que Comboio É Este, mas também o fulgor que se acende a propósito da casa das máquinas de um outro meio de transporte – o navio –, em O Fogueiro, de Kafka. E haverá mais afinidades entre o checo e A. M. Pires Cabral do que, à primeira vista, poderia parecer (o apelo do absurdo, a importância dos animais, a fascinação pelos pequenos nadas risíveis e grotescos do quotidiano).

A noite, elege-a o poema por nela encontrar aquele lapso de tempo em que as projecções, anseios e espectros se projectam mais impressivamente no imaginário. E em que o negativo das imagens ganha o esplendor inquietante que o fogo vai forjando nestes versos. A união entre o tempo nocturno e a combustão concentra em si uma tensão paradoxal – melhor sintetizada numa fórmula como “noite em chamas” (p.46) –, que fornece o comburente para ulteriores desenvolvimentos. Ou até aquilo que um poema chamará o “princípio activo” (p.45). A precisão quase científica do léxico é outro dos indícios do rigor posto por AMPC na sua própria forja.

Esta poesia está constantemente a salvar-se do carácter hierático e distanciador que facilmente poderia adquirir. Impede-o a permanente descida à terra (a mesma de Algures a Nordeste), a capacidade que A.M. Pires Cabral tem de tocar as coisas e de deixar que estas transmitam os seus rastos às incursões que o poeta faz às regiões que estão para lá dessas mesmas coisas. Veja-se o triângulo de sentidos formado entre as palavras “fogo” e as duas ocorrências de “cigarro”. E como os dois últimos pontos promovem uma operação de desvio que conduz do inefável ao prosaico que se repete e multiplica na sua profanidade – “Que o fogo sou eu mesmo que o trago de raiz e comunico à noite/ – por simples contacto, como num/ cigarro aceso se acende outro cigarro.” (p.33) Entre vários outros motivos, que têm, por exemplo, que ver com a específica mundividência que enforma estes poemas, Deus é descrito como “aquele senhor grave que se encontra/ aos comandos desta traquitana” (p.10). O que não significa a fútil procura de sentidos unicamente humorísticos, mas denuncia a mão atenta do poeta que, do mesmo golpe, prime a substância perecível sem deixar de permitir reservas para interrogar outras dimensões, que estão para lá da pele e da superfície do mundo.

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