Avignon, balanço de um festival que gosta de se pensar como o lugar da utopia

Foi uma das mais difíceis edições do Festival de Avignon. Ao mau tempo juntaram-se as greves e as reacções divididas sobre uma programação assinada, pela primeira vez, por Olivier Py.

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Archives, de Arkadi Zaides DR/Festival d'Avignon
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Don Giovanni: Die Letzte, não-ópera de Antu Romero Nunes DR/Festival d'Avignon
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La Ronde du Carré, de Dimitris Karantzas DR/Festival d'Avignon
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La imagination del futuro da companhia La Re-Sentida DR/Festival d'Avignon
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Olivier Py num momento de protesto no festival Reuters

Três dias antes do fim de mais uma edição, Olivier Py dizia-nos, em conversa na sala de reuniões do Claustro Saint-Louis, que nunca se podia ter uma palavra final sobre o Festival de Avignon.

No sábado passado, dia de balanço, o director, enfrentava sozinho o público no pátio da universidade Louis Pasteur e assumia que 2014 “não foi simples, mas ainda assim foi belo”. É isso que importa guardar? “Queria um festival político e acho que o tive mas talvez não como o imaginei. Às vezes é preciso sair da política, que é algo mais vasto, e aproximarmo-nos da poética”, disse Py. 

No final de um festival que foi tudo menos fácil, o balanço do director divide-se entre um modo de tornar os violentos debates em “modos de defesa da democracia e da república, bens que nunca estão plenamente conquistados” e a necessidade de justificar a queda de vendas de bilhetes e de ocupação de salas. A organização avançou uma ocupação de 90% para os 57 espectáculos programados, “o que é francamente impressionante para uma edição tão caótica”, mas representa uma queda de cinco por cento relativamente a 2013, que corresponde a 120 mil bilhetes vendidos contra 128 mil no ano passado. Para Olivier Py as razões são externas: três dias de greves (4, 12 e 24 de Julho) e dois dias de temporal (7 e 13 de Julho), que levaram à anulação de vários espectáculos. E as perdas acumuladas são “um problema para o próximo ano”, disse. Nas redes sociais, nos fóruns de espectadores, nas páginas da imprensa nacional e internacional poderiam encontrar-se outras razões que justificam um festival que demorou a arrancar, que não apresentou consensos, que não se relevou dinâmico e, sobretudo, que falhou, a nosso entender, como grande movimento que tira o pulso à importância política – simbólica ou concreta – da criação contemporânea, sobretudo numa cidade que, por todo o lado, ainda deixa ver restos de apoio à Frente Nacional.

Sobre as críticas Py diz: “Não me aborreci um único minuto e com isto não quero dizer que tenha tudo sido divertido. Houve coisas profundas, houve muitas dificuldades, alguns diálogos por vezes duros, mas, no fim, este festival parece-se, afinal, com aquilo que vos prometi.” E volta a falar de dinheiro: “No total 300 mil euros que cabe ao Estado recuperar”, afirmou peremptoriamente, em resposta a uma espectadora que pedia que os mecenas públicos e privados se juntassem. “O Estado tem que escolher se quer salvar este festival. Vivemos hoje num paradoxo cultural. Enquanto as salas de espectáculos e os museus estão cheios, os discursos políticos têm cada vez menos referencias à cultura”. E Avignon, “lugar de cultura no mundo, lugar de debate e de encontro em vez de supermercado da cultura, como desejava Jean Vilar [o fundador e primeiro director do festival entre 1947 e 1971]”, é o lugar “para a utopia”. Disse Olivier Py: “É ao Estado que cabe essa responsabilidade e não a nós, e aos outros, de encontrar soluções para esconder essa responsabilidade”.

Os efeitos vão começar a sentir-se já no próximo ano e serão feitos de escolhas: “Se o Estado não se responsabilizar seremos obrigados a escolher entre a produção, a criação, a acção social ou a programação. Ou, então, fazer um festival mais curto”. Ao PÚBLICO, perguntado se o impacto das perdas punha em causa a sua própria direcção, Olivier Py dizia, peremptório: “É a margem de risco artística que está em risco. Avignon pode escolher ser apenas um festival que compra espectáculos, mas eu não tenho vocação para dono de garagem”.

E, a seguir, mais um recado: “300 mil euros talvez não seja muito para o MEDEF [o organismo que gere os acordos laborais] mas é enorme para um festival”. Sobretudo um festival, diz, que mostrou como o debate sobre a cultura não vive dentro dos gabinetes. “Não compreendo como é que a plataforma de concertação [criada para propor um novo modelo para o estatuto do profissional do espectáculo] poderá fazer férias em Agosto, como se não houvesse mais discussão e pudéssemos voltar a encontrar-nos apenas em Setembro”. Avignon, anti-supermercado da cultura, “lugar da utopia”, mostrou, quis explicar o director, que “a precariedade é central ao problema da cultura e que é preciso que um governo de esquerda não a esqueça”.

As críticas são ferozes, como ferozes foram os ataques que lhe foram dirigidos em cada uma das manifestações, e em cada uma das assembleias-gerais que decorreram antes de cada um dos espectáculos, todos os dias. “Os intermitentes souberam mostrar qual é o lugar da cultura no mundo, mas também qual é o lugar do cultura nas políticas culturais”. Por isso, Olivier Py, espera. E, enquanto espera, fala de 2014 como o ano em que “à interdisciplinariedade se juntou uma outra disciplina: o pensamento”. Foram 124 debates, assistidos por 23 mil pessoas, de entrada livre, naquele que é, afinal, o maior forum professional e o maior palco de encontros do universo teatral. “Quis um festival que fosse uma imagem do mundo e não a imagem do mundo. Um mundo que nos mostre que lutamos todos pelo mesmo e onde a ideia de diversidade não é a mundialização. A diversidade de um festival não é só geográfica, é também o modo como cada espectáculo, através do discurso dos seus artistas e das suas equipas, nos pode dar notícias sobre o mundo de onde vêem”. Py tem razão, um festival serve para aproximar as geografias, as territoriais e as outras. E Avignon, no concentrado anual que faz, ansioso por “ser mais do que um catálogo”, mostrou-nos alguns modos de pensar o espaço, o tempo e a sua relação com o corpo e a memória.

À cabeça Arkadi Zaides, coreógrafo que com Archives nos mostrou como o conflito que opõe Israel e a Palestina é um conflito onde o corpo guarda, na memória, as feridas de uns e de outros. Pequena jóia de precisão vivida na tensão da eclosão de nova guerra. Depois La imagination del futuro ancorado numa releitura da História do Chile, que a companhia La Re-Sentida transforma em panfleto magnífico sobre a falência da utopia socialista. Ainda, Don Giovanni: Die Letzte, não-ópera de Antu Romero Nunes, que experimenta a acidez da impossibilidade de uma ideia de comunidade baseada no amor, a partir de uma leitura sagaz e perversa do libreto da ópera de Mozart e Lorenzo da Ponte. Por fim, La Ronde du Carré, de Dimitris Karantzas, opus essencial sobre a crise à escala da dependência emocional, numa Grécia destruída mas resiliente a mostrar como pode o silêncio ser um modo de comunhão.

Quatro exemplos, quatro estreias em Avignon, numa edição que se quis fazer a menos com autores com 35 anos (média de idade bastante inferior à média de idades do público, que ronda os 40 anos), e com outros olhares, menos dependentes das redes internacionais. Uma chamada de atenção a um sistema burocrático e demasiado auto-centrado, perguntamos a Py. Resposta: “É uma responsabilidade do festival mostrar outros nomes. Não podemos apresentar sempre os mesmos”. Sobre o que se segue, pede para esperar. “Talvez em Setembro”.

Crítico de teatro e dança

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