As fissuras na parede

Um impressionante romance de estreia que narra a luta contra os fantasmas que assombram uma mente insana

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De repente tudo pode mudar. Matthew tem nove anos, poucos menos do que o seu irmão Simon, que tem síndroma de Down, e passa férias com os pais. Rejeitado por uma das crianças com quem brinca, foge a correr, cai, magoa-se num joelho e é o irmão que, apesar da sua debilidade física, o carrega de volta aos pais. Numa outra noite, depois de ambos os irmãos terem saído para dar umas voltas pelos arredores, Simon morre acidentalmente (esta morte permanecerá obscura ao longo do livro). Matthew não se recompõe e começa a desenvolver um sentimento de culpa de que nunca se livrará. Fecha-se em si próprio (“até que ponto a vida pode encolher até caber numa casa”), deixa a escola, e passa a ser a mãe, que em tempos fora professora, a ensiná-lo em casa.

É com este enredo que o poeta e escritor inglês Nathan Filer começa o seu (premiado) romance de estreia, O Choque da Queda (vencedor de dois Costa Book Awards). A estrutura narrativa é algo caótica, com sucessivas e curtas analepses; o leitor quase não se apercebe que dez anos passaram e que Matthew é agora um jovem de 19 anos que faz terapia ocupacional num hospital em Bristol. O narrador desta história tenta passar para o papel, num estilo simples, por vezes quase infantil, a dor que lhe enche os pensamentos. Após a morte do irmão, começa a ter alucinações, a ouvir a voz de Simon, a desenvolver uma delirante teoria atómica que inclui o irmão morto e o nosso lugar no Universo. Matthew sofre de esquizofrenia. “Vou contar o que se passou porque será uma boa maneira de apresentar o meu irmão. Chama-se Simon. Acho que vão gostar dele. Eu gosto, a sério. Mas daqui a duas páginas ele estará morto. E, depois disso, o Simon nunca mais foi o mesmo.”

Nathan Filer, que foi enfermeiro psiquiátrico e é actualmente investigador na área da psiquiatria (para além de documentarista para a televisão e professor de escrita numa universidade), consegue através desta história triste e irónica dar-nos uma outra percepção da loucura, corporizada por uma personagem desamparada e em luta permanente contra a raiva e a culpa. O ambiente familiar em que Matthew cresce é devidamente posto em destaque por Filer, ao fazer da mãe uma figura que carrega e lhe transmite o lado perturbado, apesar de ser uma pessoa cheia de boas intenções. O passado da mãe (“pensar no passado é como abrir campas”), que ainda jovem se tentou suicidar numa ponte de Bristol e só não o fez porque se perdeu no caminho, acompanha todas as acções de Matthew desde criança. Como contraponto a esse lado doloroso, há a avó, um refúgio.

Matthew escreve a sua história como exercício de terapia ocupacional — com mais ou menos dificuldade, de maneira desarrumada, por vezes com desenhos e frases em estranhas manchas gráficas (assim reproduzidas no livro, bem como as ilustrações), a escrita como uma espécie de fuga ao vazio que é a sua vida, parte da qual passada a dormir (chegam a ser 18 horas quando é injectado, pois não engole comprimidos). “Uma grande parte da minha vida não é nada. Uma grande parte da minha vida é só o tempo a passar.”

O Choque da Queda

é um romance complexo (apesar da sua aparente e enganadora simplicidade), extraordinariamente bem escrito, despojado de tudo o que não necessita, que narra uma luta feroz contra os fantasmas que assombram a mente insana de uma personagem. Nathan Filer consegue iluminar de maneira singular as suas zonas sombrias. “É como se cada um de nós tivesse uma parede que separa os sonhos da realidade, mas a minha tem fissuras. Os sonhos conseguem insinuar-se pelas fissuras, até que é difícil saber a diferença.”

De certa forma, a sua ironia refinada faz lembrar Julian Barnes em algumas passagens. Mas também nos traz à memória esse livro perturbador de Mark Haddon, O Estranho Caso do Cão Morto, sobre um jovem autista.?

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