Angélique Kidjo veio a Sines dar uma lição de vida, Gisela João mostrou a que soa uma história

Angélique, Fatoumata e Gisela: foi o no feminino que se despediu mais uma edição do Festival Músicas do Mundo que deixará saudades. Balkan Beat Box e Mohamad Reza Mortazavi asseguraram o resto da festa.

Fotogaleria
Gisela João em Sines Mário Pires
Fotogaleria
Angélique Kidjo em Sines Mário Pires
Fotogaleria
O concerto de Angélique Kidjo deu ao público a possibilidade de subir para o palco Mário Pires
Fotogaleria
Fatoumata Diawara em Sines Mário Pires
Fotogaleria
Tigran em Sines Mário Pires

A resposta, vinda do palco, foi a esperada: antes de uma canção intitulada War Again, Tomer Yosef, vocalista do grupo, usou da palavra para condenar o conflito e pedir ao público que se lhe juntasse a gritar pela paz na Palestina e em Israel. Simples, eficaz, sem se implicar em declarações sobre colonatos, muros, reconhecimento de Estados ou Jerusalém, e uma forma de varrer do caminho o incómodo em que o festim preparado pelos Balkan Beat Box poderia tropeçar. O que era espectáculo, espectáculo continuou.

A partir daí, e embalado desde logo pelo habitual fogo-de-artifício final que abençoou a sua entrada em palco, o colectivo reunido em Nova Iorque apresentou um concerto pensado ao milímetro para não dar descanso a um público sedento de festa. A fórmula, aliás, é infalível: saxofones que se socorrem das tradicionais bandas de metais europeias e da música klezmer para dar corda a um carrossel que nunca abranda, sugando para o seu interior rítmicas hip hop, rap avulso, uma energia rock e umas chispas de punk. O fogo-de-artifício fica-lhes bem: é música de excesso e espectacularidade.

O movimento contrário, de querer trazer a política para o palco, coube a Angélique Kidjo, naquele que foi o concerto mais emotivo da noite – ombreando com Fatoumata Diawara e Roberto Fonseca. Kidjo quer falar do mundo. E quer falar das mulheres no mundo – daquelas que não se sentam à mesa de negociações pela paz ou pela reconstrução dos países, daquelas que em África não parecem “cabides” – palavras dela: “Venham a África ver mulheres que se parecem com mulheres reais”. E quer falar de não deixar morrer as democracias cada vez mais vergadas e mantidas sob a trela da finança, e de como devemos celebrar as diferenças e não entendê-las como ameaças. Como leva o seu próprio discurso à letra, dá ordem de soltura à banda que trata por igual o cardápio de ritmos tradicionais africanos, o funk e a soul, e desce até ao público, abraçando e deixando-se beijar por quem encontra pela frente, sem deixar de projectar uma voz que juraríamos não ter fim nem precisar de microfone, abastecida pela mesma energia sem-fim com que a vemos rodopiar, cantar e dançar do início ao fim do concerto.

Pouco depois, pede homens e (sobretudo) mulheres no palco para dançarem a sua música. E tudo se concentra e revela neste momento que, não sendo de absoluta originalidade, em Angélique Kidjo é fácil de perceber querer dizer isto: uma recriação de África em palco, do espírito resiliente que enaltece nas mulheres do seu continente, uma vitória da celebração e da vida sobre a mesquinhez e a podridão de uma humanidade promotora de desigualdades e subjugações várias, uma lição de como na comunhão e na festa há um sentido para a passagem pelo planeta e para a superação dos tropeções diários, uma proposta de ritual a replicar cada adversidade. Entre os temas, Kidjo vai reforçando o seu discurso pela igualdade, marcadamente feminista mas muito além disso, logo seguindo para cantar a sua heroína Miriam Makeba (Pata Pata – “nem vou anunciar esta canção porque se não a conhecerem é porque não vivem no planeta Terra”, avisa) e Cesária Évora (Sodade) e despede-se com a música da sua aldeia no Benim refeita pelo funk. Todo um banho de humanidade.

As histórias de Fatoumata e Gisela

Imediatamente antes, a cantora maliana Fatoumata Diawara e o pianista cubano Roberto Fonseca (ela trouxe as cordas, ele a secção rítmica) voltariam a desenhar o encontro inicialmente previsto entre músicos dos dois países no disco que ficou conhecido por Buena Vista Social Club (a participação dos malianos seria boicotada pelo atraso na obtenção dos vistos). Menos explosiva e telúrica do que Kidjo, Fatoumata é um prodígio de elegância musical, uma voz que encanta sem esforço e que casa sem atrito com a linguagem de jazz latino capitaneada por Fonseca. Ele, teclando-lhe camas sonoras de um Gershwin filtrado por Tom Waits oferece-lhe, por exemplo, a possibilidade de se fingir Ella Fitzgerald. É um concerto em que manda a beleza, infiltrada por dedicatórias a Nelson Mandela e às crianças refugiadas a quem a normalidade é sonegada, ou histórias sobre clandestinidade.

Este confronto constante com um mundo trazido pela música e não pelos noticiários do dia-a-dia é outro dos atributos únicos do FMM. E que representa, igualmente, uma certa reconciliação de um público que cresceu rodeado de pop-rock com a ideia de que a música comporta histórias e pessoas. E isso ouvimo-lo também de uma forma felizmente desabrida de cada vez que Gisela João abre a sua boca abrindo a nossa também. A dela para cantar, a nossa para não parar de pasmar perante uma torrente emocional que tanto arrepia ao aplicar o dramatismo de uma alma caída ao chão em Meu Amigo Está Longe como na forma brilhante com que traz a tradição para os seus/nossos dias numa nova (A Casa da) Mariquinhas reescrita por Capicua – enxerto de contemporaneidade em modelo bairrista sem qualquer choque, como só Paulo Bragança antes conseguira com Fado Mudado.

Gisela, a quem o vento quase expunha mais do que o previsto, haveria de dar o palco aos guitarristas (magnífico Ricardo Parreira) para trocar de roupa, tal como saberia pedir ajuda a António Variações (Quero É Viver, do reportório dos Humanos) para lidar com o percalço que a privou por alguns minutos do seu viola. Mas o que encanta em Gisela João é o mesmo que observamos quando nos fala com voz de menina e canta em tom de mulher: como se fosse em tudo coincidente o instante em que, à boleia do seu canto, fadista e público se vêem largados num reboliço de sentimentos que estavam adormecidos. Cantar uma história é isto.

Uma orquestra de dez dedos

Depois de Gisela João, na noite de sexta-feira, Tigran Hamasyan não conseguiria o mesmo efeito surpresa do ano passado, quando improvisou um concerto a solo por ausência forçada do percussionista indiano. Mas descontado esse efeito, Tigran em trio não fica demasiado atrás de Tigran a solo. Transitando, como antes, entre melodias vocais arménias e um virtuosismo da escola clássica russa que pode ser interrompido por um segmento de human beatbox, por um devaneio em piano eléctrico à procura de pistas de Miles Davis por entre as teclas ou fazendo loops da sua própria execução que manipula como um produtor de hip hop, Tigran exige as suas milhentas capacidades técnicas sem erguer um altar para o seu ego. Em concerto, aquilo que faz é quase reproduzir a diversidade de um leitor de MP3: o lirismo pianístico é irmão do jazz espasmódico é irmão de uma canção tradicional é irmã de um r&b robusto.

O tal efeito surpresa em solitário, nesta edição do FMM, ficou por conta do percussionista iraniano Mohammad Reza Mortazavi. Só perante a sua figura em palco podemos (e, ainda assim, com confessa dificuldade) acreditar no que ouvimos. Munido de um daf ou de um tonbak, simples instrumentos percussivos de tradição persa, poder-se-ia crer que estaria em palco uma orquestra de percussão. Mas não, é um homem que, valendo-se apenas dos seus dez dedos e das palmas das suas mãos, rouba aos instrumentos uma tal miríade de sons, muitos deles em simultâneo, que, para além do maravilhamento musical proporcionado, fica no ar um rasto de magia. Como se fosse o reino do impossível a materializar-se perante uma multidão por meio de um truque que ninguém consegue descortinar. É, claramente, um caso de ver para crer naquilo que se ouve.

E é em momentos de revelação como este (juntem-se Kayhan Kahor, Selma Uamusse, Colin Stetson , Meridian Brothers, Jambinai, Ajinai, Ibrahim Maalouf e Niladri Kumar, só este ano) que se pensa quando, às quatro da manhã da última noite de FMM, diante do portento rítmico do mchiriku dos Jagwa Music, um som de absoluta precariedade, preso por arames, nascido da súbita chegada de órgãos Casio à Tanzânia e, ainda assim, capaz de promover um incessante resultado hipnótico. É nesses momentos que se ouve um "velho" repetente confessar-se à beira das lágrimas por o FMM todos os anos ter um fim. O antídoto para o desconsolo é sempre o mesmo: no dia seguinte, começa a contagem decrescente para o próximo. E renasce a esperança tão bonita quanto absurda de que, um dia, o FMM não termine.

Sugerir correcção
Comentar