Afinal, há feminismos

Uma pedrada no charco, ainda por cima bem dada, este livro que em menos de cem páginas inova no panorama ensaístico português

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Introdução às Teorias Feministas do Direito, de Rita Mota Sousa é um livro interessante e bem feito, que traz às livrarias portuguesas uma belíssima sistematização do que são as várias correntes ideológicas do feminismo

Tardou, mas não falha. Pelo contrário, Introdução às Teorias Feministas do Direito, de Rita Mota Sousa é um livro interessante e bem feito, que traz às livrarias portuguesas uma belíssima sistematização do que são as várias correntes ideológicas do feminismo, esclarecendo a sua sucessão histórica e o modo como se contrapõem e formam nessa contraposição umas às outras. E há ainda, como razão de ser da obra, a explicação de como essas correntes ideológicas feministas influenciam o Direito e o vão transformando. Do mesmo modo que vão mudando a sociedade.

Num país onde os feminismos são estigmatizados e oficialmente não existem, é uma novidade positiva um livro como este. Tanto mais que é feito numa linguagem acessível, longe do jargão académico, e com uma manifesta preocupação didáctica e explicativa. Um pequeno ensaio, com menos de cem páginas, que está escrito para ser lido de uma penada, sem tropeçar. E em que a teoria e a prática se entrecruzam, já que Rita Mota Sousa termina o livro com a concretização do estado da arte no que toca ao reconhecimento do papel social das mulheres em casos judiciais reais, relativos a dois dos domínios em que se verifica a dominação social masculina: a violação e o assédio sexual. 

Rita Mota Sousa é magistrada do Ministério Público e especialista em igualdade de género e feminismos; casa assim a sua profissão de origem com a sua área de especialização académica. Uma ligação entre teoria e prática que se espelha nos dois prefácios do livro. Um é feito por Maria Clara Sottomayor, juíza do Supremo Tribunal de Justiça. O outro é da autoria de Márcia Nina Bernardes, professora e coordenadora académica do Núcleo de Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Logo a abrir, a autora adverte que desde o século XIX, mas ainda hoje, “o sentido do discurso legal não é só o de impor, designadamente pela via penal, um certo padrão de moral sexual à mulher, mas a construção — e encarceramento — da identidade feminina na relação com a sexualidade, com a procriação e com a maternidade” (p. 17). E lembra que se, ao longo da História mais recente, “foi a lei a negar o acesso das mulheres aos cargos de governo, ao voto e aos bancos das universidades, garantindo em toda a vida pública a dominação masculina, foi também a lei que, silente e omissa, reforçou a subordinação da mulher ao homem na esfera doméstica” (p. 17). Para sublinhar que, ao longo do século XIX, “o sistema de direitos individuais constrói-se, essencialmente, pela protecção do direito de propriedade, propriedade de que o homem era titular”.

É contra um Direito que regula uma sociedade patriarcal e centrada no interesse masculino que os feminismos se vão afirmando e agindo. Primeiro, nos anos 70 e 80 do século XX, com o feminismo liberal, que “teve como objectivo lato o de abrir o acesso das mulheres a áreas da vida até então exclusivas dos homens” (p. 26). Para isso, “as feministas liberais acreditavam que o tratamento legal das mulheres como iguais dos homens lhes traria liberdade de escolha, autonomia, e seria suficiente para a realização do estatuto de plena igualdade” (p. 27). Assim, “o feminismo liberal colocou em crise (…) o modo como a lei se dirigia às mulheres, tratando-as como um grupo em torno de características presumidas, ao invés de as tratar como indivíduos” (p. 30). E “teve ainda a virtualidade de inscrever nas agendas políticas e da esfera pública a questão da igualdade de género” (p. 32).

Nos anos 80 do século XX, surgem correntes feministas que se centram “na assunção da diferença, afirmando que reconhecer a diferença não poderia equivaler a uma legitimação da desigualdade e à sua naturalização, justificando-a com a biologia” (p. 33). O expoente destas correntes foi o feminismo cultural. “Ao essencializar as mulheres de acordo com a sua propensão ao cuidado e à ligação, o feminismo cultural podia ser lido como uma actualização da teoria das esferas separadas (…) num alinhamento com os mesmos argumentos que historicamente foram a causa da sua opressão” (p. 40).

Relevante na segunda metade do século XX, como contraponto ao feminismo liberal, foi também o feminismo radical. “Onde as liberais viam homens e mulheres como indivíduos, as radicais centravam-se nas mulheres como classe, uma classe dominada por outra classe — os homens” (p. 42). Esta corrente considera, por outro lado, que devem ser sublinhadas as diferenças entre homens e mulheres considerando que essas diferenças “foram socialmente construídas em ordem a permitir a dominação” (p. 42). Sendo que “é a dominação, e não a diferença, que subalterniza as mulheres” (p. 43).

Por fim, a autora apresenta o feminismo pós-moderno, que tem como expoente a Teoria Queer. Para esta corrente, “o género não é uma essência, mas um processo social de atribuição de sentido e significado às diferenças de género”: “Contra o modelo binário, existe uma multitude de performances de género possíveis” (p. 48). Logo, “a proposta é olhar a diferença, não como essencial, mas como socialmente construída” (p. 51). Rita Mota Sousa salienta que “a marca mais importante do feminismo pós-moderno no direito será o resultado do combate ao essencialismo e resulta na afirmação do direito à diversidade, do direito a não se ser assimilado por nenhuma categoria e a exercer a identidade de género de formas heterodoxas” (p. 53). E exemplifica: “Em matéria de Direito de família, o anti-essencialismo é visível no facto de o binário de género não mais ser o critério na definição do contrato de casamento e na admissibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo; na possibilidade da adopção por casais homossexuais ou na simplificação do processo burocrático de mudança de sexo para efeitos de identificação civil” (p. 53).

A obra de Rita Mota Sousa mostra assim o caminho e as mudanças que os feminismos operaram até hoje no domínio do Direito. Até porque a importância das leis como pilares estruturantes das sociedades democráticas e dos Estados modernos leva a autora a defender que “a luta das mulheres é, tem de ser, uma luta que se trava no campo do direito: luta pelo reconhecimento da igualdade e da diferença, e dos arquétipos políticos e métodos legais através dos quais a igualdade e a diferença se irão acomodar” (p.20). E conclui: “Luta por um direito novo, pensado de uma perspectiva nova, que inclui as diferenças sem as sublinhar, e que não reforça as desigualdades. Um direito que resolva o dilema da diferença” (p. 20). 

É um caminho que em Portugal — e não só — tem ainda muito para andar, mas no qual o lançamento deste livro é um passo significativo.

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