À sombra do muro

Cenas do quotidiano de uma vida na Palestina

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Omar: cenas do quotidiano de uma vila na Palestina a viver uma paz relativa, algo que nunca vemos na televisão

No filme que o tornou conhecido, O Paraíso, Agora!, Hany Abu-Assad examinava o processo mental que transforma rapazes vulgares da Palestina em bombistas suicidas, com a frieza e ambiguidade suficientes para, então, ter sido criticado quer por israelitas (“filme pró-palestiniano”) quer por palestinianos (“filme pró-israelita”). Menos ambíguo, Omar conserva uma dimensão cerebral, tanto por se interessar pelos efeitos psicológicos, mentais, do conflito israelo-palestiniano, como pela sua forma narrativa inconclusiva, que mais do que um fecho propõe um encadeado sem fim, como uma “história da violência” no sentido cronenberguiano do termo, ou um jogo de pingue-pongue, infernal e imparável. Sem rede, mas com muro: o célebre muro que isola várias zonas da Palestina e que o protagonista — como uma bola de pingue-pongue, forçando a metáfora — cruza várias vezes ao longo do filme, ora para lá ora para cá, por motivos “activistas” como por motivos passionais (a namorada vive do outro lado).

O muro, impressionantemente filmado desde o contra-picado inicial, é o protagonista não-humano do filme, mesmo que a sua presença, apesar de Abu-Assad parecer prometer o contrário, rapidamente se torne simbólica: é um símbolo de divisão, certamente, até porque há palestinianos dos dois lados, mas também um simbolo de “porosidade”, e se onde há divisão os lados são claros, onde há porosidade as coisas tornam-se menos evidentes e menos seguras. Em termos dramáticos, o motor de Omar é — ainda os “efeitos mentais” — o avanço da suspeita, da dúvida e da duplicidade (Omar, o protagonista, é libertado pelos israelitas na condição de passar a ser um agente duplo e entregar os seus amigos).
Abu-Assad não tem a insólita imaginação, nem o lirismo, de Elia Suleiman, autor das mais singulares ficções sobre a Palestina. Também não tem aquele conflito interior, aquela dúvida moral, que tem dado os mais notáveis filmes sobre o conflito feitos por israelitas (a Valsa com Bashir de Ari Folman, o Lìbano de Samuel Maoz). Mas é um cineasta interessante a lidar com a tortuosidade psicológica, que reconhece os mecanismos do thriller de espionagem como perfeitos para a explorar e os aplica com rigor e eficácia, numa factura de qualidade “industrial” a toda a prova. Talvez, no fim de contas, isso não baste para arrancar Omar da gaveta dos filmes que viverão sobretudo como alimento para sessões “com debate” e depressa esquecidos mal o debate comece (porque o “tema” subjuga tudo). Omar não sacode esse espectro, como O Paraíso, Agora! não sacudia. Mas tem, para lá de todas estas “saliências”, algumas coisas simples que se vêem com gosto: cenas do quotidiano de uma vila da Palestina a viver em paz relativa, a lembrar-nos que a TV só mostra vilas da Palestina quando há bombardeamentos ou distúrbios. 

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