A Cultura, esse detalhe que nos faz repensar todo o sistema

Entre quarta e sexta-feira, o fórum internacional O Lugar da Cultura reuniu no Centro Cultural de Belém dezenas de conferencistas e oradores. Iniciativa ambiciosa do secretário de Estado da Cultura, suscitou dúvidas e questionamentos ácidos da parte de alguns agentes do sector. O custo global da iniciativa terá orçado os 287 mil euros.

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Paisagem com a Queda de Ícaro, de Pieter Bruegel, o Velho DR

Há uma célebre pintura do mestre renascentista Pieter Bruegel, o Velho, que Homi Bhabha, um dos mais importantes autores dos estudos pós-coloniais contemporâneos, acha que nos deve continuar a fazer pensar. Na conferência que esta semana deu no fórum internacional O Lugar da Cultura, organizado pela Secretaria de Estado da Cultura (SEC), Bhabha deixou o seu púlpito e atravessou o palco do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, para se pôr frente a uma grande projecção do quadro conhecido como A Queda de Ícaro e apontar no canto direito o pequeníssimo detalhe que mostra o filho de Dédalo caído do céu a afogar-se solitariamente no mar.

Na verdade, o título completo da pintura de Bruegel é Paisagem com a Queda de Ícaro. Um título que encerra um programa, porque o que a composição nos oferece é uma imagem do mundo a seguir o seu curso enquanto ali, num pequeno detalhe do canto direito, um jovem que tentou voar alto de mais está a morrer afogado sem que ninguém sequer note a sua tragédia em curso.

Ao centro, em primeiro plano, um agricultor fixa os olhos no chão enquanto guia o arado com que trabalha a terra. Mais abaixo, um pastor acompanhado pelo seu cão guarda distraidamente um rebanho de ovelhas enquanto observa o céu azul. E depois, lá em baixo, há o enorme navio de velas desfraldadas que agarra o nosso olhar e lança sombra sobre as pequeninas pernas de Ícaro, que caiu de cabeça e está a segundos de desaparecer de vez nas plácidas águas verdes da baía.  

Supostamente, a obra está feita na terrível perspectiva de Dédalo, a observar impotente, lá de cima, a desgraça do seu filho. O que leva à pergunta de Bhabha: “Afinal, quem é hoje a testemunha moral do sofrimento humano?” Esta, diz ele, é uma das perguntas que a Cultura pode lançar ao mundo. Uma pergunta auto-reflexiva, ou não será o papel de testemunha um dos lugares de sempre da Cultura? É uma hipótese de reflexão. Outra, diz Bhabha, é pensar se a Cultura não será o detalhe periférico e secundarizado que nos faz reconsiderar todo o sistema, exactamente como as pernas de Ícaro – quando por fim damos por elas.

Na quarta-feira, Bhabha, que se celebrizou com o livro The Location of Culture (1994) e conceitos dos estudos pós-coloniais como o de hibridação, fez a conferência de encerramento do dia inaugural do fórum O Lugar da Cultura, que terminou na sexta-feira. Falou para um auditório que, desde as 9h e ao longo de todo o dia, nunca se aproximou de estar cheio e que, por essas 19h, ia já a caminho de vazio. Numa sala que, completa, tem 1.459 lugares, o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, o orador seguinte e último, falou para menos de 200 pessoas ao fazer o auto-elogio da actuação do seu Governo na área da Cultura.

Adesão tépida de públicos

Transitando ao segundo dia para o Pequeno Auditório, uma sala com capacidade para 348 pessoas e que teve também sempre muitos lugares vazios, o fórum, uma ambiciosa iniciativa do secretário de Estado do sector, Jorge Barreto Xavier, com um colóquio internacional de dois dias e um dia de debates sobre o tecido cultural português com nove mesas de discussão, parece ter colhido uma adesão tépida de públicos. E não só em termos numéricos: raríssimos ou quase inexistentes, nos dois primeiros dias, os rostos de artistas e outros agentes independentes do sector. Depois, entre alguns dos que marcaram presença, curiosidade ácida sobre os custos de um programa que inclui ainda as jornadas Porta Aberta, a arrancar este sábado com cerca de 50 actividades em instituições públicas e privadas de todo o país.

Entre os cerca de 40 conferencistas e oradores dos dois primeiros dias, 16 foram nomes internacionais – com viagens e potenciais despesas de estadia e cachets. Homi Bhabha, por exemplo, costuma cobrar à volta de seis mil euros pelas suas comunicações. E há que somar os custos de aluguer de espaços e pessoal, dos assistentes de sala aos tradutores simultâneos e ao apresentador que garantiu a continuidade das sessões, mais a produção de 10 vídeos com testemunhos de artistas que serviram de separadores entre as diferentes comunicações, o aluguer dos equipamentos de projecção, os caterings e a publicação de brochuras, entre outros custos.

Entre quarta e sexta-feira, o PÚBLICO insistiu junto da SEC pelo orçamento global do fórum. Sem sucesso. Por email, na sexta-feira, o assessor para a comunicação, João Póvoas, fez apenas saber que “o investimento do Estado português foi de cerca de 140 mil euros”, não explicando qual a origem destes fundos e recusando avançar qualquer outro valor, nomeadamente apoios mecenáticos. Mais tarde, ainda na sexta-feira, a SEC fez chegar à comunicação social um primeiro balanço em que elencava mais valores: 108 mil euros do Programa Operacional de Assistência de Lisboa, 14 mil euros do Programa Operacional de Assistência Técnica e 25 mil euros de apoio mecenático da Fundação Millenium BCP. A soma destes valores apontaria para um orçamento global de 287 mil euros, que a Lusa deu como orçamento global, mas, na sua elencagem, a SEC não diz claramente se estes valores representam a totalidade ou apenas uma parte dos fundos em causa.

De qualquer forma, é o dobro da verba anual anunciada esta semana pelo Governo para a afectação de técnicos das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) às comissões de protecção de menores, cujo polémico funcionamento deficitário acentuará a situação de perigo de milhares de crianças já em situação de risco por todo o país.

No balanço enviado à comunicação social enquanto as mesas de debate estavam ainda em curso, a SEC referia que "passaram pelo Centro Cultural de Belém mais de 1.500 pessoas, o que representa uma adesão significativa e acima das expectativas iniciais” – a estas, acrescenta a SEC, juntaram-se mais de 1.400 pessoas a acompanhar a transmissão do fórum pela Internet.

Outro investimento foi o Plano de Estudos Cultura 2020, uma iniciativa do secretário de Estado da Cultura, que reúne dois anos de trabalho de dezenas de investigadores, e cuja edição em 11 volumes teve lançamento no primeiro dia do fórum. Segundo avançado na sua comunicação pelo presidente da Agência para o Desenvolvimento e Coesão, José Santos Soeiro, o plano teve um apoio de 600 mil euros pelo Programa Operacional Assistência Técnica. Foi desenvolvido por sociólogos, geógrafos e economistas, entre outros profissionais, e mapeia, por exemplo, recursos, instrumentos financeiros, possibilidades de cooperação e emprego (gratuitamente disponível online).

Recursos e possibilidades foram também alguns dos temas das comunicações de nomes como o checo Tomás Sedlácek, autor do conhecido livro Economics of Good and Evil, o austríaco Christian Felber, conhecido pela sua Economia do Bem Comum, e o norte-americano Jonathan Taplin, director do Annenberg Innovation Lab, da Universidade da Califórnia. Entre muitos outros nomes nacionais e internacionais que avançaram ainda perspectivas sobre temas mais técnicos, como modelos de desenvolvimento, e mais gerais e teóricos, como cultura e religião.

 

Tensões inter-religiosas

Nas comunicações do painel intitulado A Cultura, para lá da religião, o líder da comunidade islâmica de Lisboa, Sheik Munir, e a vice-presidente da comunidade israelita em Lisboa, Esther Mucznik, desconcertaram parte da assistência ao protagonizar um momento de aparente perpetuação de tensões inter-religiosas, apesar de ambos proporem a Cultura como espaço de encontro e de as suas intervenções se dedicarem à desmontagem de preconceitos e estereótipos, tanto sobre judeus como sobre muçulmanos. No início da sua comunicação, o líder islâmico agradeceu a Jorge Barreto Xavier o seu segundo lugar num painel de intervenções em que, por uma vez, o orador muçulmano não foi o último a ter oportunidade de falar, normalmente para uma plateia já adormecida. Depois dele, a líder israelita não resistiu a referir, com um sorriso, que, na verdade, ela deveria ter sido a primeira, tendo em conta os seus cinco mil anos de História.  

Já Tomás Sedlácek, um comunicador efervescente, arrancou gargalhadas à plateia com as imagens que usou para questionar a forma como o Ocidente tem vivido a sua crise em curso. Para Sedlácek, talvez consigamos perceber e viver melhor as actuais circunstâncias no tradicional eixo Europa-Estados Unidos se pensarmos no actual momento como “uma espécie de depressão pós-coito” – é que, segundo este economista, em vez de pensar que o capitalismo e a União Europeia falharam, talvez seja mais correcto e produtivo pensar que, na verdade, atingimos com eles um pico máximo.

Sedlácek pega nas grelhas de leitura da psiquiatria para dizer que, no momento em que atingimos os nossos objectivos, deixamos de ter sonhos e motivos para acordar cedo pela manhã. À concretização de um sonho, segue-se uma crise, por falta de desígnios de vida, diz ele. A solução é encontrar uma nova fantasia. Mas, às vezes, podemos demorar a conseguir delineá-la. “Não é esta, de certa forma, a nossa actual situação?”, questionou Sedlácek.

Mas uma das mais profusamente aplaudidas intervenções viria de um orador português, o ex-ministro social-democrata Álvaro Laborinho Lúcio, a quem coube apenas fazer o resumo de um dos painéis: aquele em que intervieram Sheik Munir e Esther Mucznik. Recordando a expressão típica das crianças face a um conceito complexo, o hoje presidente do concelho geral da Universidade do Minho começou por dizer: “Cultura: sei o que é, mas não sei explicar.”

Chamando a atenção para o facto de as grandes culturas serem oriundas do Médio Oriente, e as grandes ideologias do Ocidente, Laborinho Lúcio acabou por propor a Cultura como o “lugar mínimo e utópico de encontro”. Mas apenas para sublinhar como nos cabe a nós não desistir de transformar as utopias em factos materiais das nossas vidas. Para isso, contou que quando terminou o ensino primário na Nazaré da década de 1950 passou a ter que fazer diariamente de autocarro 24 quilómetros de ida e vinda até Alcobaça, para poder continuar a estudar. O mesmo autocarro seguia para um destino mais distante: Torres Novas, que, na altura, ganhou contornos de visão mirífica. “Assumi Torres Novas como a minha utopia”, contou Laborinho Lúcio, explicando que um dia percebeu que aquela criança que ele foi “não chegava à utopia porque se apeava cedo demais.”    

   

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