Desenterrar o cadáver e enchê-lo de electricidade

Foram um cometa, a super-banda possível do metal português, e regressam para um concerto único em que revisitam um disco negro, sujo, lento e único, Hellstone.

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Hellstone é o que se chama de “disco de culto” e serviu para lançar os Men Eater

Vamos lá puxar a cassete atrás: “Nos anos 90 havia muita gente vestida de preto, de calças elásticas, cabelos compridos”, recorda Carlos, o ex-baterista dos Men Eater, antes de continuar: “Hoje, isso foi parar ao underground. Num festival como o Primavera não tens uma única banda pesada”, completa.

Sim, os tempos mudaram. Ali no final dos anos 80 e até 2000 “o metal era a música que tinha mais gente nos concertos, um público fiel”. O Blitz reportava a cena com regularidade e – estatística feita de memória – um em cada quatro colegas de liceu tinham t-shirts dos Manowar – banda que Carlos e os restantes Men Eater por acaso detestam.

Depois, qualquer coisa aconteceu. Num dia “uma das maiores bandas do mundo eram os Metallica e eram pesados”, havia “público, havia gente” e de repente “não houve renovação”. “Não houve bandas grandes que arrastassem imensa gente, como os Machine Head. Não vês miúdos a interessar-se por música pesada como nos anos 90”.

E de certa maneira isso pode ter sido a sorte dos Men Eater, que quinta-feira sobem ao palco do Musicbox para um acontecimento que só se deu por um par de vezes: tocarem na íntegra o seu álbum de estreia, Hellstone, o que não fazem desde 2007. É a primeira de três noites que o clube lisboeta dedicada ao – chamemos assim – rock pesado, num cartaz que inclui gente como os Quartet of Woah (sexta-feira) ou os Kilimajaro (sábado).

Também algo mais mental

Se nunca deram com Hellstone então quem perde são vosotros: já lhe chamaram muita coisa, de sludge a crust, mas referências a géneros obscuros pouco ajudam. Trata-se de uma incomum amálgama de riffs herdados dos anos 70 com um balanço rítmico lento e reptilíneo, cortinas de electricidade saídas do doom-metal e aquela tendência para enfiar várias canções dentro de canções que havia no prog. É, ocasionalmente, um petardo, mas também algo mais mental, subreptício e negro. Imaginem um torno com ferrugem a apertar-vos lentamente a cabeça e no entanto isto dar-vos prazer: estão próximos.

Hellstone é o que se chama de “disco de culto” e serviu para lançar os Men Eater no que quase foi uma carreira internacional séria no circuito, digamos, não-peso-pluma. Carlos não gosta muito de avaliar, porque viu as coisas de dentro, mas “principalmente esse primeiro disco foi marcante na altura e, talvez por ser muito transversal e diferente, muita gente de fora do metal gostava de nós”. Olhando agora à distância ele conclui que “se calhar as pessoas gostaram mais do Hellstone porque era mais ríspido e natural”. Ou então, aventa, “apareceu na altura certa, no momento certo. Se calhar se aparecesse hoje não tinha repercussão alguma”.

Ou se calhar tinha. Porque o poder daqueles riffs mantém-se intocado. O riff era o santo Graal dos Men Eater: “O ponto de partida sempre foram os riffs de guitarra. Sempre perdemos tempo à procura de riffs. Há por aí muitos bons riffs mas nós procurávamos O riff. Queríamos que cada canção tivesse pelo menos um riff memorável. Chegávamos a ter 100 discos por disco e escolhíamos 10 ou 15”.

Gravado num curto intervalo de tempo, quase por brincadeira, Hellstone foi disco do ano para a Loud e tornou-se a ponte para digressões lá fora e convites (desculpem o repisar da imagética metafórica) de peso. Em 2009, com Vendaval, a segunda rodela, fizeram uma grande digressão europeia, e a partir daí foram mudando de formação – e também de som, que se tornou mais atmosférico.

Em 2011, após Gold, a banda pôs uma pedra no seu stoner rock particular. Podia não ter sido assim: “Tínhamos chegado a um ponto em que tínhamos promoção na Alemanha, que é um dos mercados mais fortes. Tivemos uma proposta muito boa dos EUA para editar, mas isso implicaria mudar de vida e de país. Quando uma editora americana te assina, as digressões lá são gigantes e era dispendioso estarem a pagar-nos voos de Portugal para os EUA constantemente, pelo que tínhamos de ir viver para lá. Mas já tínhamos uma vida minimamente estável e não quisemos arriscar. Era um sonho que teria aceite se tivesse 21 anos. Um tipo sonha mas tem de ter pelo menos um dedo no pé no chão para não acabar a dormir na rua”.

Ninguém sabe se foi ou não melhor assim, mas também nenhum deles estava à espera de tanta atenção quando se juntaram. Carlos – que hoje vive do trabalho no seu estúdio – conheceu Miguel, o vocalista e guitarrista – que é de Quarteira e hoje toca em More Than a Thousand e é fotógrafo – quando este tinha 17 anos e ele pouco mais. Com os What Went Wrong fizeram três digressões europeias. “Neste universo não é descabido. As condições não são as melhores, ganhas pouco dinheiro, é como se fossem umas férias. Os More Than a Thousand ainda as fazem”. Carlos Azeitona – que tocou nos Blacksunrise – era o baterista e hoje comissário de bordo; João, o baixista, é hoje operador de câmara. Pelo meio ainda tiveram tempo de tocar em bandas como os Riding Panico.

Miguel ensaiava com a sua banda no estúdio de carlos, João idem e um belo dia Carlos “estava a conduzir a carrinha dos Blacksunrise para um festival em Espanha, o Miguel estava lá com outra banda dele e combinámos fazer uma banda e passado três meses já tínhamos um EP”.

Não soa nada assim, mas por incrível que pareça Hellstone foi “um disco muito imediato, sem grande produção”. Foi um daqueles discos que simplesmente saiu naturalmente, talvez porque tivessem muita coisa em comum: “Nós queríamos um punk bem pesadão, sujo e arrastado. O Miguel tem uma forte herança de Black Sabbath, Pink Floyd e Led Zeppelin, porque o pai ouvia isso. O meu pai também ouvia muito música dos anos 70. O blues sente-se muito, nesse primeiro disco”.

Deram o primeiro concerto em Cacilhas, num local que se chamava Culto e depois passou para Revolver e depois foram desde Braga (“num sítio chamado Censura Prévia”) a Faro passando, claro, pelo Montijo. Tinham casas cheias dentro daquele circuito a que o bom gosto escolhe não olhar, e casas cada vez maiores à medida que tocavam. Contudo, o seu público não era dado a stagediving nem a pontapés. “Ficavam concentrados a ouvir os pormenores, abanavam a cabeça, não numa de headbanging, mas pelo balanço”.

O resto da história já foi contada. Resta lembrar que eles só tocaram Hellstone na íntegra no primeiro par de concertos e que a formação original já não toca junta há quatro anos. O resto são riffs arrastados, balanço e energia escura. Ou, nas palavras de Carlos, “desenterrar o cadáver e enchê-lo de electricidade”.  


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