“Se a troika quisesse levar o fado não podia, é nosso”

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O grande painel do museu com as fotografias de vários fadistas Miguel Manso

“Em 1907, Sigmund Freud e Carl Jung iniciam uma parceria que iria mudar o rumo da ciência...” Parecia interessante o resumo da história do filme americano que iam ver. Mas felizemente ainda não tinham comprado bilhete, quando souberam que o fado foi considerado património imaterial da Humanidade pela UNESCO, hoje em Bali, na Indonésia.

Mal souberam da notícia, os quatro amigos, todos na casa dos 70 anos, puseram-se num táxi e rumaram ao Museu do Fado, em Lisboa. “Não havia outro sítio para estar neste dia”, diz Helena Mesquita, a mensageira da boa nova que tirou os amigos de um centro comercial da capital e os trouxe até ali.

Os quatro estão num dos corredores do Museu do Fado, onde hoje se circula com dificuldade, tal foi a afluência dos que pensaram como Helena e os amigos. A maioria são portugueses, acima dos 60 anos, mas também há casais com crianças e alguns jovens.

São tantos que Arlindo Santos sente-se “como um gravador” de tanto repetir “bilhetes gratuitos na loja, fotografias sem flash” e um mais ocasional “tickets in the shop, pictures yes, flash no”.

É tanta a excitação com a “classificação” que está na recepção do museu apenas com duas horas do sono, era suposto estar ali às 6h00 da manhã, chegou às 4h30. “Não consegui dormir nada, sempre a sonhar com isto. Se a troika quisesse levar o fado não podia, é nosso!”, remata e vai repetindo as mesmas indicações às centenas que lhe entram pela porta.

Pode dizer-se que Teresa Nobre, de 67 anos, é uma mistura, associa o gumbé, um estilo tradicional da Guiné-Bissau, e o fado que sempre ouviu na rádio e depois na televisão quando o seu país de origem ainda era colónia portuguesa. Arlindo Santos ouve a conversa e explica-lhe que “o fado tem influências africanas”.

Ao lado, estão três amigos brasileiros, que também estabelecem “a ligação com a música brasileira, com o choro, uma melodia melancólica mas muito emotiva”, resume Fábio Reis, que é professor de Antropologia e está em Portugal a fazer uma formação no âmbito de um doutoramento.

Num painel do museu há diversas fotografias de nomes importantes do fado e há várias pessoas ali paradas quase a fazerem concurso para ver quem identifica mais nomes, mas por aqueles corredores hoje há fadistas de carne e osso a circular. Anita Guerreiro é das primeiras a chegar e é como se ali ela fosse a personificação do fado. “Olha a Anita Guerreiro!”, aponta-se. São tantas as solicitações que a fadista instala-se no bengaleiro a dar autógrafos e a ser fotografada.

Ali chega mais tarde Maria Armanda que se cruza com Mafalda Arnauth que lhe diz “Parabéns para nós”, aconselhando-a usar um crachat preto como o que tem pendurado ao peito, “Eu sou do fado”.

Mais discreto, de guitarra portuguesa na mão e unhas postiças prontas a dedilhar, “o mestre António Parreira”, de 62 anos, procura as palavras para descrever o que sentiu quando soube, por volta do meio-dia: “Fiquei... olhe... fiquei nervoso de contentamento, apetecia-me ir fazer uma corrida de atletismo. Fiquei com energia para isso. É um dia inesquecível”.

António Parreira não irá fazer uma corrida de atletismo, mas será a guitarra portuguesa que acompanhará os fadistas que quiseram juntar à festa, cantando. Era para ser no interior do museu, mas eram tantas as pessoas que teve que ser transferida para o pátio exterior.

Mesmo ao lado do museu apinhado de pessoas há uma mesa aparafusada ao chão onde se joga dominó e é como se Anita Guerreiro não tivesse começado o primeiro fado da tarde. Ali se percebe que há pessoas para quem ouvir fado é tão “banal” que até cansa. José Marques, de 45 anos, vive em Alfama e tem a casa onde vive colada a uma casa de fados. Quer queira, quer não, todas as noites é das 21h00 às 24h00, “sempre o mesmo reportório, por isso às vezes meto a televisão um bocado mais alto. Já sonho com aquelas canções. Quando é todos os dias também chateia”, comenta enquanto observa o jogo.

É por isso que quando começam os aplausos dos que ali vieram festejar, nem vira a cabeça, abana os ombros e diz “isto aqui é todos os dias, é a canção do bairro” e faz uma pausa: “Estou a falar mal do fado, ainda me matam aqui”.

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