Reichardt caminha para noroeste e encontra o seu melhor filme; Frears leva a água ao seu moinho: um hit

No 70.º Festival de Veneza começa a travar-se um duelo pelo título de filme mais marcante da edição: o consenso vai para Philomena de Frears

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"Philomena", de Stephen Frears, é já um dos filmes mais falados do festival DR
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Dalota Fanning em "Night Moves" DR
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Jesse Eisenberg em "Night Moves", de Kelly Reichardt DR

Kelly Reichardt anda há vários filmes a caminhar em direcção ao Noroeste americano, para o Oregon. Vem procurando o espírito de um lugar, porque há cinco filmes que tudo começa a partir de histórias de Jon Raymond, escritor de Portland, e da relação com essa paisagem. Pelo caminho os filmes de Kelly vêm tacteando, como se procurassem no escuro, uma América paralela. Ouvindo os sons que ainda se ouvem, como aquele apitar de comboios ao longe, das grandes narrativas americanas. Do que resta de um património, social, político, cinematográfico. Se calhar já só há escuro...

Kelly Reichardt chegou então ao seu melhor filme: Night Moves, que teve estreia mundial no Festival de Veneza (competição). Aí encontra três activistas ambientais que se juntam para concretizarem o seu idealismo e o seu dogmatismo: a explosão de uma central hidroeléctrica. As personagens de Jesse Eisenberg, Dakota Fanning e Peter Sarsgaard terão a sua existência ancorada na realidade do Noroeste americano, explicou a realizadora em conferência de imprensa: uma zona dos EUA cheia de consciência ambiental, de mundos que se protegem na sua autosuficiência, consumindo o que produzem, e nessa bolha fazendo levedar o seu radicalismo. Mas Jesse, Dakota e Peter interpretam personagens que são reconhecíveis do universo de Reichardt/Raymond: a dificuldade de despertarem empatia, a obsessão, o mutismo – Jesse Eisenberg pode mesmo ser uma variação da personagem de Michelle Williams em Wendy e Lucy (2008).

Na sua actividade de radicais razoavelmente amadores, acabarão por causar "danos colaterais" - a morte de um campista que pernoitava na zona da explosão. Mas por essa altura, Night Moves é já só noite (espantoso trabalho de fotografia de Christopher Blauvelt) e ambiguidade moral: as personagens estão cercadas como numa prisão, há sombras de grades no seu idealismo.
Este fica para já, na companhia de Old Joy (2006), como o filme de Reichardt mais ensopado em fantasmas – como todo um património cinematográfico a que Kelly, professora de cinema, tem acesso, da paisagem do western de Anthony Mann à Terceira Geração, de Fassbinder, passando pelo thriller paranóico dos anos 1970 ou pelo fabuloso Du Rififi chez les Hommes, de Jules Dassin...

O job de Frears
Mas há um duelo que se começou a travar para o título de filme mais marcante do festival, com a entrada em cena de Philomena, de Stephen Frears. Reacções entusiásticas, uma projecção que causou lágrimas e gargalhadas, conversas já sobre Óscares para a actriz principal, Judi Dench, fazendo Frears por ela o que fez por Helen Mirren em A Rainha (também estreado no Festival de Veneza). O filme de Reichardt inquietou com a sua claustrofobia, não podia haver melhor forma de sacudir fantasmas com Philomena, e com a calculada mistura de drama e comédia, cortesia do argumento de Steve Coogan (tambem intérprete) e Jeff Pope. Não há hipótese: o consenso vai para o filme de Frears.

Baseado numa história verídica de uma irlandesa a quem a Igreja Católica, nos anos 1950, tirou o filho ilegítimo para o vender para adopção, e que cinco décadas depois, com a ajuda de um jornalista continua a procurá-lo, começa por ser tratado por Frears como um buddy film. Um filme sobre um "casal" improvável: um jornalista cínico e uma mulher fiel à sua crença: acreditar. O argumento vai trabalhando com precisão de relojoaria um equilíbrio. Coogan contou que durante a rodagem estava preocupado que o seu registo de comédia tomasse conta, por isso pedia a Frears que o domasse. 

Está tudo calculado, mas essa é uma objecção a colocar: o mecanismo das cenas, o timing da comédia, o espaço para o drama, é tão eficaz que comanda a duração de cada plano e se sobrepõe à história. Às vezes os actores não deixam espaço para as personagens. Mas... chapeau! para a eficácia! O realizador entrou para o barco no fim, assume isto como um "job", e não é difícil acreditar que estaria à partida mais perto do cinismo do jornalista que despreza as "histórias de interesse humano" de que os jornais precisam para (ainda) sobreviver. Esta é então a sua forma de acreditar na "história de interesse humano". Dito de outro modo: Frears fez mesmo uma "história de interesse humano", afectando a pose de que não (se) acredita nela. 

Muitos já começaram a acreditar. E por aqui se prevê que muitos mais acreditarão.

Mas o dilema é: que fazer a James Franco? Já tinha causado ranger de dentes de crispação o seu episódio para o filme comemorativo dos 70 anos de festival, Venezia 70-Future Reloaded: foi buscar imagens antigas em que Francis Coppola pugnava pela destruição para daí nascer a arte, palavra que enche a boca de Franco. Este ano realizou um filme a partir de Faulkner, As I Lay Dying (abusando do split screen), agora apresenta em concurso em Veneza Child of God, adaptando Cormac McCarthy (filmando o texto do autor como um jovem motivado pela sua descoberta recente), e já completou um outro sobre Bukowski. Em Interior. Leather Bar ficcionou os 40 minutos que William Friedkin retirou de Cruising para conseguir uma classificação etária que retirasse do filme a classificação "para adultos", mas sobretudo coloca-se aí como impulsionador de uma discussão sobre os limites e os preconceitos figurativos. Vê-se como herdeiro de uma pulsão artistica americana, sim, mas a visão é de uma naiveté basbaque e aflitiva. O que fazer a James Franco?
 
 
 
 

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