Duas vozes que se tocam

Nesta união em palco de Ana Moura e António Zambujo, não é apenas de cumplicidade que se pode falar. Fale-se de intimidade, de algo a que apetece chamar "um namoro artístico".

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Ana Moura e António Zambujo Miguel Manso
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Ana Moura & António Zambujo 4,5 estrelas (em 5) Coliseu dos Recreios, Lisboa Terça-feira, 18 de Março Sala quase cheia

Durante uns compassos, deixam os dois as cadeiras, e mesmo ali ao lado ensaiam uns passos de dança, enquanto a banda alargada (que junta músicos de ambos, nove ao todo) vai tocando Lua nha testimunha, uma morna de B. Leza popularizada por Cesária Évora. Enquanto se bamboleiam de corpos colados, segredam-se palavras naturalmente inaudíveis, mas que parecem dizer aquilo que o concerto a dois repete desde que arrancou com o tema (Despiu a saudade, que ele escreveu para ela): nesta união em palco de Ana Moura e António Zambujo, não é apenas de cumplicidade que se pode falar. Fale-se de intimidade, de algo a que apetece chamar "um namoro artístico", um ambiente para o qual conseguem convocar com impossível facilidade um Coliseu dos Recreios praticamente cheio.

A morna ajuda também a ilustrar o tom de um concerto que de morno nada teve. E que foi seguindo um guião claramente demarcado, nunca complicando aquilo que na essência é simples: os universos de Ana Moura e de António Zambujo, com um pé no fado e outro fora, não se sobrepõem mas são compatíveis, não se emancipam matando o pai, mas vivem seguros e felizes sem medo das distâncias que lhes possam valer acusações de traição ao fado. Fazem o seu caminho, sem arrependimentos ou culpas. E as vozes vão invertendo lógicas – a de Ana Moura grave, impositiva, a de António Zambujo descobrindo beleza na fragilidade, na candura. Basta ver a escolha de cada um para encore: Zambujo, a solo, à boleia da delicadeza de Lambreta; Moura, com guitarra, viola e baixo, num arrebatador Fado loucura.

O guião estipulava um arranque mais acercado dos fados tradicionais (ou, pelo menos, clássicos), com passagens por Amor de mel, Amor de fel (letra de Amália Rodrigues, música de Carlos Gonçalves), Caso arrumado no Fado Pedro Rodrigues ou A fadista no Fado Primavera (também da autoria de Pedro Rodrigues), ainda alternando as interpretações de cada um e os respectivos reportórios, sob o olhar atento do outro.

A chegada das mornas, no capítulo seguinte, equivaleu, simbolicamente, à narrativa de abertura ao mundo por que ambos passaram depois de terem começado a cantar com regularidade na casa de fados Senhor Vinho. Primeiro, M’cria ser poeta, de Paulino Vieira, e Lua nha testemunha, duas tocantes visitas a Cabo Verde, as vozes já a procurarem-se e a tocarem-se; em seguida, uma festiva passagem por O barco vai de saída, de Fausto, uma das primeiras referências de Ana Moura. As escolhas, inteligentes, vincam a ligação a músicas de outras paragens e o apego às raízes, fugindo a duas geografias que seriam mais óbvias: Alentejo e Brasil.

Só que o Brasil, tratando-se de António Zambujo, nunca se perde sem volta. E depois de deixar nas mãos dos instrumentistas a conclusão do segmento das raízes ao tocar o instrumental de Milagrário pessoal, o músico voltaria ao palco com uma interpretação sublime de A tua frieza gela, nunca antes tão arriscada (os metais numa roda-livre dissonante que não feria o quase silêncio) quanto compensadora, e o eco de Caetano Veloso a pairar por cima da canção.

Chegada a altura de lembrar os mais recentes álbuns de cada um, o tom descomplexado e pouco austero da noite deu a Ana Moura o Flagrante de Zambujo e, no verso do jogo, os Búzios ouviu-se na voz do cantor. E cada um aproveitou para arrancar sorrisos ao mimetizar o outro: ela a dar um trinado final caricatural, ele retribuindo com o indicador em riste ou a dança de ombros da cantora.

Pedro da Silva Martins, dos Deolinda, na condição de autor de temas para os dois, ajudaria a abençoar este casamento de palco na recta final. Mas o que fica verdadeiramente reforçado neste concerto (que se repetiu na quarta, no Coliseu dos Recreios, e tem sexta-feira uma última apresentação no Coliseu do Porto) é a certeza de que há caminhos paralelos que se reforçam e que fazem sentido se observados em conjunto. Sobretudo, assim, sem soar a manifesto ou marcação de território geracional, apenas um desejo de juntar duas vozes de espanto que se tocam quase sem dar por isso.

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