Delfim Sardo: Temos obras para um museu de arte contemporânea de relevância mundial
Deitou para o lixo os desenhos que fez. Escreveu uma vez um poema e rasgou-o. A arte fugiu dele, mas ele não fugiu da arte. Delfim Sardo, 54 anos, ensaísta, professor e curador, descobriu a vocação de dar a ver a arte dos outros. A partir de Outubro será o responsável pelas exposições da Culturgest.
Parece uma galeria de arte e é de facto um espaço para artistas. Parece um estabelecimento comercial e é realmente uma loja. Não tem nada do ambiente asséptico e burocrático que costuma definir a maior parte dos gabinetes, mas chama-se Gabinete, evocando os famosos cabinets de curiosités, os antepassados renascentistas dos museus dos nossos dias. É no Gabinete de Delfim Sardo que marcamos encontro, por entre obras de Nuno Sousa Vieira, José Pedro Croft ou Francisco Tropa, para venda; tal como um saco de plástico da campanha de Joseph Beuys, no princípio dos anos 70, em defesa da democracia directa, com a particularidade de estar assinado pelo próprio Beuys. Em Outubro, Delfim Sardo abandona este projecto que iniciou há cerca de um ano com três amigos. Aceitou o desafio de programar as exposições de uma das principais instituições culturais do país, a Culturgest. Continuará a dar aulas na Universidade de Coimbra, publicará dois livros ainda este ano e tem em preparação uma série televisiva para a RTP2.
Comecemos por um lugar-comum: reconhece validade na ideia de que um crítico (ou um curador) é inevitavelmente um artista falhado?
Não sei se é uma verdade universal. Validade pessoal, sim, reconheço.
Falhado ou frustrado?
Frustrado, não; falhado, sim [risos]. Passei boa parte da minha adolescência a julgar que ia ser artista. Desenhava imenso. Houve períodos da minha vida em que desenhava diariamente e com intensidade. A certa altura percebi que aquilo que fazia não chegava aos calcanhares das coisas de que gostava, e houve um momento em que decidi que não ia ser artista.
Foi uma epifania ou uma desilusão?
Isto já foi há muitos anos. Teve uma componente de desilusão, sim.
Faltou-lhe um empurrão para continuar?
O principal empurrão que me faltou foi o meu. Morri na praia.
Chegou a expor?
Sim. Em coisas completamente locais, sem qualquer relevo. Duas ou três exposições regionais em Aveiro, onde cresci.
Como é que lembra o momento em que decidiu que não seria artista?
Deitei fora todos os materiais que tinha. Foi uma decisão consciente. Agarrei naquilo e pus tudo no caixote do lixo.
Diziam-lhe que tinha jeito?
Tinha um certo jeito para o desenho. Desenhava bem dentro dos parâmetros comuns. Desenhava com alguma verosimilhança em relação ao mundo.
Tinha antecedentes familiares.
O meu pai foi estudante em Coimbra, como eu, e enquanto estudante foi um excelente caricaturista. Tem algumas caricaturas notáveis, nomeadamente a sua autocaricatura. Continua a ser reconhecível hoje, tantos anos depois.
O seu pai fez estudos ligados às artes?
Não, é advogado. Esteve em Coimbra a estudar Direito.
Foi por isso que o Delfim começou por se inscrever em Direito?
Provavelmente, sim. Foi com influência paterna. Andei dois anos em Direito. Dois malfadados anos. Depois acabei por mudar para Filosofia.
De que é que não gostou no curso de Direito?
Eu não tinha nada que ver com aquele universo. Ainda houve algumas cadeiras em que tive algum interesse: as cadeiras claramente mais filosóficas.
Filosofia do Direito.
Sim. Introdução ao Direito, pelo professor Castanheira Neves, que dava a cadeira com um tom neokantiano. Mas percebi muito rapidamente que aquele não era o meu caminho. No fim do segundo ano dei-me conta de que tinha andado ali a perder tempo da minha vida e mudei para Filosofia.
O período em que desenhava terminou ainda em Aveiro?
Ainda se prolongou durante o tempo de Coimbra. Fiz algum design gráfico. Colaborei com os organismos autónomos da Academia.
Desenhava logótipos de jornais universitários?
Sim. Desenhei os jornais de campanha das listas de que fiz parte.
Foi activista?
Sim [risos]. Desenhei os cartazes e a imagem gráfica da Bienal Universitária de Coimbra, da Semana Internacional de Teatro Universitário. Ainda continuei a fazer design gráfico com o primeiro Área Urbana, em Viseu, que foi um projecto do Ricardo Pais, em 1985.
Nunca foi profissional?
Nunca. O último trabalho que fiz foi o projecto do catálogo para a recuperação do Teatro Viriato. Ainda há dias lá fui dar uma conferência, num programa promovido pela Dalila Rodrigues, e, qual não foi a minha surpresa, ao chegar e ver num canto um desenho meu emoldurado na parede. Tive muita vergonha, uma vontade enorme de me meter pelo chão abaixo.
Por não se reconhecer nele?
Reconheci-me, mas não tenho orgulho nenhum.
O seu activismo, em Coimbra, era partidário?
Não. Completamente apartidário. A única ligação partidária que tive foi na minha tenra adolescência. Fiz parte da juventude do MES. De resto, não tive mais nenhuma ligação partidária.
Havia listas independentes na Academia de Coimbra?
Na altura, havia. Foi, aliás, o último período em que houve listas independentes.
A Academia de Coimbra é muito partidarizada.
Claro. Naquela altura ainda não era. Eu nem me lembro quem eram os dirigentes da Associação Académica de Coimbra.
Nunca fez parte de nenhuma lista eleita?
Nunca. Sempre direccionado à derrota [risos].
Era um anarca?
Não, não era. Eram sempre projectos dentro do campo da esquerda, onde, aliás, continuo a situar-me ideologicamente. Mas projectos muito desalinhados. Em tempos mais recuados, com umas influências marcusianas. Depois, noutras alturas, com umas influências mais Guy Debord. Mas dentro do campo alargado da esquerda.
Influências que uma boa parte da esquerda, provavelmente, também não aceitaria de bom grado.
Pois não. Claro que há pessoas daquela altura que depois foram alinhando. Não foi o meu caso, nunca tive militância partidária rigorosamente nenhuma.
Além da leitura e do desenho, na sua adolescência em Aveiro também se dedicou à natação.
Aveiro era uma cidade com muito poucas actividades possíveis para a malta mais nova. Portanto, era uma necessária uma ocupação quase frenética do tempo. No meu grupo de amigos praticava-se natação. No período a seguir ao 25 de Abril tínhamos um envolvimento político grande. A música também era muito importante na altura.
Tocou?
Não, nunca toquei nada. Era um bom ouvinte.
Havia cinema?
O cinema que havia, o Avenida, já não é cinema; agora é uma loja da Lacoste [risos]. Nesse cinema tínhamos, aos domingos à tarde, as chamadas "Matinés Clássicas", que não eram necessariamente clássicas. A programação era excelente. Foi lá que vi alguns filmes marcantes para mim.
Lembra-se do primeiro que teve esse papel?
Não me lembro do primeiro, mas lembro-me de alguns filmes que vi lá. O Inserts, do John Byrum, Os Mistérios do Organismo, do Dusan Makavejev. Ia todos os domingos à tarde ao cinema. Tinha a sorte de ter uma amiga que era filha do dono e que me oferecia bilhetes. Mas o filme que mudou claramente a minha relação com o cinema foi o Apocalypse Now. Estreou-se quando eu devia ter uns 16 ou 17 anos. Esse, vi-o no outro cinema que havia em Aveiro, o Teatro Aveirense. Havia matinée e soirée. Vi-o na sexta-feira à noite, no sábado à tarde, no sábado à noite, no domingo à tarde e no domingo à noite. Cinco vezes, nesse fim-de-semana.
Em que momento é que as artes plásticas entraram na sua vida?
Um determinado gosto pela arte começou muito cedo, por causa do tal jeito para desenho, de miúdo. Eu gostava de desenhar e também ia vendo.
Havia exposições regulares em Aveiro?
Não. Havia uma associação, com a qual cheguei a expor, chamada Aveiroarte. Tinha artistas de Aveiro e alguma dinâmica própria. Havia também algum gosto em casa, incutido pelos meus pais.
A família fazia viagens a exposições?
Não. Também não havia muito onde ir. O Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian só abriu em 1983, a meio do meu percurso em Coimbra. O meu primeiro contacto com artes plásticas, no sentido mais cosmopolita, com propostas que saíam completamente daquilo que eu conhecia e do que eu imaginava que devia ser arte, foi quando cheguei a Coimbra. As primeiras exposições que vi foi no Círculo de Artes Plásticas. Foi aí que vi a primeira exposição do Fernando Calhau, do Michael Biberstein, do Julião Sarmento. Tudo em 1980.
Artistas que viriam a tornar-se marcantes para si, nomeadamente o Fernando Calhau.
Qualquer um dos três. São artistas que muitos anos depois conheci.
E com quem trabalhou.
Continuo a trabalhar com o Julião muitas vezes, e com muita cumplicidade. Com o Fernando Calhau, trabalhei durante muito tempo. E com o Michael Biberstein também. Infelizmente, já nem o Fernando Calhau nem o Michael Biberstein estão vivos.
As artes plásticas, os museus e as galerias não fizeram parte do roteiro da sua viagem de Interrail, no final da adolescência?
Não. Os interesses aí eram bastante mais prosaicos. Estava mais preocupado com a praia, na Grécia, do que em ver museus [risos].
Mas não era só a praia pela praia: já o ouvi dizer que leu As Memórias de Adriano nas praias gregas.
É verdade. Lembro-me perfeitamente de estar na praia, a ler, em frente ao Mediterrâneo, e de me deparar com uma frase que dizia qualquer coisa como: “Adriano estava sentado em frente àquele mar sem marés.” E eu olho e de repente dou-me conta: pois é, isto não tem marés, a água não sobe nem desce, não tenho de mudar a toalha de lugar. [risos]
As suas leituras eram anárquicas ou foram de algum modo guiadas?
Há uma primeira parte, de leituras infantis e juvenis, que foram guiadas. Tive a sorte de os meus pais terem uma excelente biblioteca em casa: o Tolstoi todo, o Dostoievski todo, o Gorki todo. E obviamente os portugueses, também. A minha formação de leitura foi muito guiada pelo que tinha disponível em casa.
Ia à estante, de vez em quando?
Sim. Lembro-me perfeitamente do primeiro livro que li, literatura, foi do Soeiro Pereira Gomes.
Esteiros?
Por acaso foi a Engrenagem, li o Esteiros a seguir.
O Esteiros, a certa altura, fazia parte do programa escolar.
Sim. Mas li a Engrenagem quando tinha dez anos. Tenho ideia de ter sido essa a minha entrada na literatura adulta. Depois, quando cheguei a Coimbra, o ambiente era muito literário. Havia um amigo meu, muito próximo, do tempo de Aveiro, o Fernando Cascais, com quem andei no liceu, que tinha começado a colaborar com a Fenda. Foi ele que me disse: “Há um tipo, em Coimbra, que tens de conhecer, o Vasco Santos.” Conheci o Vasco e ainda hoje continuamos muito amigos. A respeito do Cascais tenho uma lembrança incrível. Em 1976 tocam-me à porta, no Verão, num dia de muito calor, e era ele. Vinha nervosíssimo. Trazia na mão um LP. “Tens de ouvir isto!” Era o Radio Ethiopia, da Patti Smith. Em Portugal foi publicado primeiro o Radio Ethiopia e só depois o Horses, pela ordem inversa da saída original. Lembro-me perfeitamente de estarmos os dois sentados na sala a ouvir aquilo, completamente embasbacados. Nunca tínhamos ouvido nada assim. Ecoava ali todo um imaginário: o Rimbaud, o Verlaine, tudo aquilo vinha em catadupas.
Esse ambiente literário chegou a puxá-lo, alguma vez, para tentativas poéticas?
Fiz uma vez um poema que foi imediatamente parar ao caixote do lixo [risos]. Nunca fui puxado para aí. Como leitor, sim. Havia uma grande circulação de livros e um ambiente de troca de informação permanente sobre o livro que saiu, o livro que se leu. Lembro-me da excitação que vivemos quando chegou a primeira versão da Poesia Toda do Herberto Helder. Eu tinha as primeiras edições em casa. Aliás, em Coimbra, na república onde vivi…
Qual era a sua república?
Era o Palácio da Loucura. E estive num quarto onde estava, pintado na parede, aquele que normalmente se diz ser o primeiro poema do Herberto Helder. Não sei se ainda lá estará. O Herberto Helder também tinha vivido naquela república. Aliás, tinha sido o meu pai a pintar o poema na parede. Eram contemporâneos, da mesma idade.
Conheceram-se?
Sim. Não sei se eram amigos. O Herberto Helder era muito próximo do Lousã Henriques, o psiquiatra de Coimbra, esse sim, muito amigo do meu pai. São muito chegados ainda hoje. Não sei que grau de proximidade é que o meu pai teria com o Herberto Helder. Creio que não muito grande.
Sabe em que circunstâncias é que o seu pai pintou o poema do Herberto Helder na parede do Palácio da Loucura?
Não sei. Por acaso, não foi há muito tempo que soube disso. Estávamos a falar e ele disse-me: “Fui eu que escrevi esse poema na parede.” É um poema, na história do Herberto, mais ou menos ingénuo. Creio que ainda foi escrito no tempo dele na Madeira.
Anterior a A Colher na Boca.
Sim. Mas o Herberto era uma presença comum em casa, pelos livros. Lembro-me perfeitamente da excitação que foi quando chegou a primeira edição da Poesia Toda. Foi muito impactante para todos.
A sua Coimbra era mais uma Coimbra intelectual do que a da estúrdia estudantil.
Foi de tudo um pouco.
Também fez tropelias estudantis?
Como toda a gente [risos]. Mas Coimbra teve o seu prazo de validade. Nos últimos anos estava fartíssimo. Queria sair de Coimbra, vir-me embora. Logo que acabei o curso vim viver para Lisboa.
O que é que o trouxe para Lisboa?
Vim dar aulas para o ensino secundário. Dei aulas de Filosofia. A primeira colocação que tive foi em Cascais, numa escola secundária. Ainda dei aulas também no Pedro Nunes, à noite. Depois fiz o curso de Gestão das Artes do Instituto Nacional de Administração. Comecei o curso em Janeiro e em Maio fui convidado para ir para o Ministério da Cultura. Foi aí que conheci o Fernando Calhau. Era o director de serviços da altura. Convidou-me a coordenar uma divisão na Secretaria de Estado, onde ainda estive durante dois anos.
Foi nessa altura que as artes plásticas começaram a ter uma preponderância maior na sua vida?
Eram muito importantes. Já durante o curso, em Coimbra, consegui sempre converter os trabalhos das várias disciplinas em trabalhos no campo da arte ou da estética.
Na sua actividade há duas vias paralelas: uma de ordem ensaística, ligada à reflexão sobre a arte, e outra de âmbito prático, que tem que ver com a curadoria...
Sim. E o ensino.
Ainda sente o ensino como uma actividade recompensadora?
Sim e não. É recompensador, porque continuo a ter a certeza de que a relação com os alunos me é essencial. É um ensino completamente virado para a prática curatorial.
A vertente do ensino está ligada à sua prática enquanto curador?
Intimamente ligada. E também à minha prática enquanto ensaísta. Há muitas ideias que testo em aulas antes de as escrever. Mas o ensino, neste momento, é também bastante deceptivo. Esta é, certamente, uma sensação generalizada de muitos professores universitários: há uma proletarização do ensino universitário em relação à função do docente. E uma enorme burocratização das tarefas universitárias. Vive-se uma formatação da avaliação que sofre de um vício a que em arte se chama "formalismo". O formalismo avaliativo traz consigo também um outro problema: uma normalização do discurso. Quanto mais os discursos estiverem normalizados, mais facilmente podem ser comparados e avaliados.
O que é paradoxal quando a matéria em causa é artística.
Completamente.
O seu trabalho como curador apareceu por iniciativa sua ou por convite?
Apareceu por iniciativa minha, porque me interessa a exposição. Mais do que ser curador, gosto de fazer exposições e catálogos de exposições.
É curioso que a palavra "curador", que tem uma raiz latina, tenha chegado ao português por via anglo-saxónica.
A primeira vez que aparece em Portugal é o António Ferro que a utiliza nos catálogos da exposição do Mundo Português. Ele tinha estado na exposição mundial de Nova Iorque, em 1939, e tinha apanhado lá a terminologia. Depois, a partir dos anos 80, quando ela começa a generalizar-se em Portugal, é claramente por influência anglo-saxónica. A terminologia usada era francesa: commissaire d'exposition; era o comissário, por influência francófona.
O que é que o entusiasma na organização de exposições?
As exposições, nas artes, têm um lado extraordinário: provocam, constroem uma relação corporalizada do espectador com as obras num determinado espaço. Essa ligação entre o espectador, o espaço, as obras de arte e a sua circunstância produzem um acontecimento. Esse acontecimento convoca, obviamente, dimensões estéticas, mas também dimensões emocionais, intelectuais, de conhecimento, políticas, antropológicas, por aí fora. A exposição é, portanto, um momento extraordinário. As obras de arte que vemos são sempre desenraizadas do seu lugar de origem, que é o atelier do artista. Somos muito poucos os que entramos em ateliers de artistas.
Vêem-se de forma diferente no atelier do artista?
Sim, obviamente. A exposição é uma construção cultural com um determinado depósito do conhecimento e um depósito cultural sobre ela, sobre a sua história, que afecta de uma maneira determinante a recepção que as obras de arte têm e a maneira como o espectador se relaciona com elas. A mim interessa-me esse dispositivo, para usar um termo do Foucault, enquanto sedimento de histórias, memórias, hierarquias, relações políticas, relações perceptivas, fenomenológicas, etc.
Não há casos em que é o artista o seu próprio curador, determinando ele as condições de exposição?
Claro que há. E por vezes com uma grande capacidade de perceber as relações que quer estabelecer com o seu público. Normalmente, no entanto, é interessante para o artista ter um interlocutor.
Um olhar externo.
Sim, que não é tão externo assim, porque é um olhar contaminado pela proximidade da relação com o artista. Mas é muito profícuo haver alguém que trabalhe esta instância da mediação.
O modo como as obras estão expostas tem impacto sobre o modo como o espectador as percebe.
Tem impacto ao centímetro. Uma obra que está cinco centímetros abaixo ou cinco centímetros acima na parede convoca relações corporais, perceptivas, de escala, totalmente diferentes.
Como é que se sente naquele corredor do Museu do Vaticano, que parece um hipermercado de obras-primas?
Aí sou mais o basbaque e menos o curador [risos]. O que me fascina é a situação em que a exposição deliberadamente constrói relações. Hoje em dia, na maior parte dos museus, essas relações são construídas culturalmente. Outros, como o Museu do Vaticano, são um depósito histórico de hierarquias políticas e de historiografia. A mim interessa-me mais quando essas condições são manipuladas para poderem construir reptos diferentes de interpretação para o espectador. Esse lado do pensamento sobre a exposição encontrei-o de uma forma consciente quando comecei a trabalhar na Secretaria de Estado da Cultura. E aí há uma pessoa que foi para mim uma referência fundamental: o Fernando Calhau. Era alguém que tinha uma intuição espacial excepcional.
Organizavam exposições?
Sim. A primeira exposição que fiz, fi-la com o Fernando Calhau.
Com obras dele?
Não. Com obras do Alberto Carneiro. Era uma exposição chamada Contingências. Essa aprendizagem com o Calhau não foi só aprendizagem das questões da exposição, foi uma aprendizagem do olhar. Há pessoas que têm ouvido absoluto, o Calhau tinha uma visão apuradíssima – aguda e certeira.
A Secretaria de Estado da Cultura, na altura, era produtora de eventos artísticos?
Sim. E até tinha uma galeria que ficava no rés-do-chão do edifício da Avenida da República, a Galeria Almada Negreiros.
Isso hoje parece impensável.
Sim. Já na altura parecia um bocadinho impensável. Era o resultado de uma grande falta institucional. Há que pensar que o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian abriu as portas em 1983. Em 1989 abriu a Casa de Serralves, que ainda não era museu. Só em 1993 é que abrem a Culturgest e o CCB. E só em 1999 o Museu de Serralves. Todo este nosso panorama artístico de arte contemporânea é muito recente. O Museu do Chiado, que já era uma instituição com imensas dificuldades antes do incêndio, fechou devido ao incêndio do Chiado e só abriu na década seguinte. Em 1990, tínhamos um terreno muito depauperizado em termos dos mecanismos de divulgação da arte.
O papel do Estado entretanto alterou-se por completo nas últimas décadas. Para melhor ou para pior?
Aí está uma pergunta muito difícil de responder. Não sei se para melhor, se para pior. Alterou-se de muitas maneiras ao longo do tempo, vezes demais, com mudanças de mais, e com alterações demasiadas ao nível do modo como o Estado entende a sua relação com o universo produtivo da cultura. O Estado em Portugal tem um problema endémico muito grande: entende a sua relação com a cultura sistematicamente como um apoio à produção artística. O Estado devia, sobretudo, dar apoio à mediação artística.
Apoiar as instituições?
As instituições – sejam elas de pequena escala, média escala ou de grande escala – que trabalham a mediação em todas as áreas. Muito raramente o Estado conseguiu produzir um discurso coerente, ou um discurso sólido sobre qual era o seu papel na relação com a cultura.
O caso de Serralves não lhe parece um caso bem sucedido?
Obviamente, há momentos bons. Esse é um dos momentos altos da relação do Estado com a sociedade no campo da cultura e das artes visuais. Já em relação ao CCB, o Estado nunca foi capaz de escrever um documento que definisse o seu modo de relacionamento com aquela instituição.
Há também a Culturgest.
A Culturgest é um caso diferente, é uma fundação que pertence a um banco.
Mas é um banco público.
Mas não há financiamento directo do Estado à Culturgest. A Culturgest funciona a partir da relação que tem com a Caixa Geral de Depósitos. Não há ali nenhuma injecção de dinheiro directo dos contribuintes. É um caso diferente. Há só um momento no qual houve de facto uma perspectiva sobre o papel do Estado em relação à cultura: foi no ministério do Manuel Maria Carrilho. O Manuel Maria Carrilho foi um bom ministro da Cultura. Teve uma ideia e uma acção com um aspecto muito positivo: o de agilizar as estruturas de apoio, fazendo estruturas mais leves. A lógica dos institutos. Mais flexíveis, mais capazes de estabelecerem ligação permanente quer com os criadores, quer com os mediadores. A partir daí, com a reconversão da estrutura de Estado em direcções-gerais, deu-se um passo atrás que agora muito dificilmente se vai recuperar. Hoje em dia, o papel do Estado encolheu a um ponto que os mecanismos fora da sua alçada ganharam dinâmicas próprias, e frequentemente não contam com o Estado para a sua sobrevivência, pelo menos nas artes visuais.
Isso não tem um aspecto positivo, apesar de tudo?
Sim, é uma consequência positiva de uma falta de acção determinada. Provavelmente com uma acção bem determinada estaríamos hoje numa outra plataforma, que não estamos.
A colecção da Caixa Geral de Depósitos está ligada à Culturgest?
Sim, é a Culturgest que gere a colecção. Aliás, é uma colecção exemplarmente tratada em termos de conservação e de inventariação. Pode servir bem como case study em Portugal, embora seja uma colecção que está parada há alguns anos, não tem crescido.
Não tem havido dinheiro para comprar mais obras.
Não tem havido orientação nesse sentido. Mas seria fantástico que pudesse um dia voltar a crescer e a assumir um papel importante.
Tem sido suficientemente exposta?
Talvez seja pouco exposta na Culturgest em Lisboa, mas tem tido um programa de itinerância. Neste momento está em Tavira, numa exposição feita pelo Bruno Marchand, um jovem curador que está a viver em Barcelona. A partir da colecção têm sido activados projectos interessantes.
Já tem planos concretos para o que vai fazer na Culturgest?
Não. Vou construir esses planos, mas ainda é muito cedo para falar deles. Neste momento a Culturgest vai continuar com o excelente programa feito pelo Miguel Wandschneider.
A colecção do BPN faz parte agora também da colecção da Caixa Geral de Depósitos?
Não sei exactamente qual é o estatuto que tem.
E a colecção da Ellipse, que também é muito conceituada, e que está encaixotada desde que o BPP faliu?
A colecção da Ellipse é um espólio extraordinário. Nunca mais haverá condições em Portugal para reunir um espólio como aquele. Olhando um bocadinho em mapa, se pensarmos na Colecção Berardo, na Colecção Ellipse, na Colecção da Caixa Geral de Depósitos e noutros núcleos de colecção que existem em Portugal, percebe-se que havia condições para termos um museu de arte contemporânea com um espólio relevante em termos europeus e até em termos mundiais.
Teria de estar tudo sob a mesma alçada?
Teria de haver uma articulação. Seria, com certeza, um esforço negocial muito difícil. Seria necessária uma grande criatividade por parte dos poderes públicos. Mas, se essas condições pudessem ser reunidas, poderíamos ter um museu de arte contemporânea de referência mundial.
Uma Tate?
É difícil dizer. Para ser uma Tate era necessário que esse museu de arte contemporânea fosse articulado também com o Museu do Chiado. Há muitos modelos para isso: o da Tate, por exemplo é de divisão nacional. Temos a Tate Britain e a Tate Modern, ainda co-adjuvadas pelas outras Tate mais periféricas, que fazem a distribuição de projectos de menor escala. Temos outro modelo, o de Düsseldorf, que tem o K20, o museu de arte do século XX, e o K21. Um dedicado à arte dita "contemporânea", o outro dedicado à arte dita "moderna". Não gosto destas categorias, mas uso-as pela facilidade de percebermos do que é que estamos a falar. Esse é um outro modelo, o modelo de divisão epocal e não de corte nacional. Qualquer modelo tem vantagens e desvantagens.
Qual lhe pareceria mais adequado no caso português?
O Museu do Chiado é um museu centrado sobretudo na arte moderna e com uma colecção portuguesa. Tem essas duas vertentes. Depois haveria lugar para um museu nacional com arte a partir do momento em que o Museu do Chiado deixa de cobrir a sua área de intervenção. Esse modelo duplo provavelmente seria muito interessante.
O que é que falta: dinheiro, vontade política?
Falta dinheiro. Provavelmente faltam condições políticas para o fazer. Falta o momento histórico para isso acontecer.
Falta apoio da opinião pública?
O apoio público não começa antes de a iniciativa ser tomada. O apoio público deve ser capitalizado a seguir. Há certamente apoio público para um grande projecto deste género. Há pelo menos um apoio público que começa por aquelas pessoas que estão directamente envolvidas no tecido artístico: artistas, galeristas, coleccionadores. Com muitas diferenças de opinião sobre metodologias, certamente; mas todas essas diferenças são negociáveis, e também não é preciso haver unanimidade.
Imagino que o Delfim Sardo vai a museus onde encontra frequentemente obras que não reconhecerá como arte.
Com certeza. Eu e todas as pessoas. Mas isso faz parte da nossa condição moderna: não ser possível qualquer tipo de consensualidade. Tentamos perceber, a cada momento, quais os protocolos que esta obra que tenho perante mim pretende que eu active.
São frequentes as anedotas de obras, no chão da galeria, que a senhora da limpeza varre, porque as confundiu com lixo.
Já me aconteceu.
Onde?
Numa exposição realizada na Figueira da Foz. Era uma instalação de um artista norte-americano chamado Jimmie Durham; uma instalação muito interessante que resultou de uma performance. Dessa instalação consta um lavatório de mãos. Esse lavatório durante a acção da performance foi partido e os cacos remanescentes do lavatório eram colocados no chão ao pé do lavatório. Quando foi feita a instalação dessa peça na Figueira da Foz, houve uma reunião com as senhoras da limpeza para lhes dizer: “Atenção, isto pertence à obra.”
É favor não varrer.
Um dia recebo um telefonema a dizer que houve um problema: a obra foi varrida.
Mudou o turno da limpeza?
A senhora que tinha feito a formação adoeceu e houve uma outra senhora, parece que muito boa profissional e muito competente, e zelosa, que fez aquilo que lhe competia: tirar os cacos do chão e deitá-los fora. [risos]
Essa história, que tem graça...
Depois, não teve graça nenhuma.
Houve consequências jurídicas?
Jurídicas, não. Houve uma negociação longa com o próprio Jimmie Durham para se perceber como é que a peça podia ser restaurada. Ele teve de realizar novamente a performance para substituir aquela peça por outra.
À parte o lado anedótico, que problemas é que essa história lhe coloca em termos da validade daquela obra?
Não me coloca problema nenhum. Basta pensarmos, por exemplo, que o próprio Picasso teve as Demoiselles d'Avignon, hoje em dia uma obra-prima incontestada do século XX, durante décadas no atelier sem saber exactamente o que aquilo era. A primeira entrevista em que menciona o episódio famoso do Trocadero, onde teria visto as máscaras africanas e teria tido a inspiração para aqueles rostos, é de 1936, e a peça tinha sido pintada em 1907. Vinte e nove anos antes, portanto. E é a primeira vez que ele abre a boca para falar daquela situação.
Quer dizer que ele próprio não a valorizava.
Ele próprio não sabia o que pensar daquela peça. Ela foi recusada pelo museu de arte moderna de Paris.
E hoje está no MOMA.
Sim.
Os franceses devem estar bastante arrependidos.
Certamente que estão [risos].
Pode dizer-se que a arte se antecipa no tempo a outros fenómenos sociais?
Sim, claramente.
Não sei se viu uma notícia recente de um senhor que decidiu enlatar ar de Fátima para o vender em latinhas a três euros cada uma.
Não vi [risos].
Quando li aquilo, lembrei-me imediatamente do Air de Paris, a ampola que Marcel Duchamp levou para os Estados Unidos...
50 cc d’Air de Paris.
Não sei se o senhor que enlatou o ar de Fátima conhecerá a obra de Duchamp.
Suspeito que o que ele conhecia eram as latinhas de ar de Berlim enlatado que se vendem na torre da televisão. Eu comprei uma, da primeira vez que fui a Berlim [risos]. Naquela torre, em Alexanderplatz.
E será que aí havia um eco de Duchamp.
Aí é capaz de ter havido, sim. No do senhor de Fátima, não sei. Embora seja lá um dos melhores restaurantes que eu conheço; e tem na parede uma fotografia de Jorge Molder [risos]. A arte contemporânea está presente em Fátima, no Tia Alice.