O caso da garantia soberana da República de Angola

O Banco de Portugal e o Governo português não têm defendido bem os interesses portugueses no caso do Banco Espírito Santo Angola (BESA).

Qualquer banco tem de ter um bom equilíbrio entre o que deve e o que empresta para poder legalmente funcionar. No entanto, pelas regras obrigatórias do sistema financeiro angolano (como em outros países), os empréstimos em risco que não vierem a ser pagos só valem contabilisticamente uma percentagem do seu valor (ponderação pelo risco), percentagem essa que pode ser zero nos piores dos casos. O problema com o BESA foi que, nos últimos anos, com o avolumar dos empréstimos de alto risco, começou a haver problemas de liquidez e problemas de ter rácios exigidos por lei.

A “solução” original foi o BES fazer enormes empréstimos ao BESA, para que este pudesse resolver problemas de liquidez, mas isso não resolvia a questão de não atingir os rácios exigidos para manter o BESA a funcionar. E o problema era que, se houvesse oficialmente um problema grave com o BESA, então os empréstimos do BES ao BESA também seriam oficialmente declarados de alto risco e, neste caso, pelas regras contabilísticas obrigatórias em Portugal, ficaria o BES com um problema muito grave de não ter os rácios exigidos por lei.

É aí que aparece a ideia de o Presidente de Angola assinar em 31 de Dezembro de 2013 o documento que originou a garantia soberana de 5700 milhões de dólares (cerca de 4570 milhões de euros) que cobria cerca de 70% dos empréstimos que o BESA tinha feito. Com essa garantia, como que por magia, os empréstimos de alto risco ficavam sem risco, porque eram cobertos pela garantia soberana. Ficando esses empréstimos sem risco, podiam entrar na contabilidade com o valor total, resolvendo de uma penada os problemas do BESA para atingir os rácios legais. Melhor ainda, com essa situação resolvida, o empréstimo de mais de 3000 milhões de euros do BES ao BESA passava a ser um empréstimo oficialmente sem risco, podendo o BES colocar esse valor no “lado bom da contabilidade”, contribuindo fortemente para que o BES pudesse esperar atingir os rácios necessários para continuar a funcionar.

Essa garantia soberana de Angola era portanto fundamental tanto para o BESA, como para o BES (dono de 55% do BESA).

E por que é que o Estado angolano deu a garantia? A razão oficial foi “para a implementação dos objectivos constantes do Plano Nacional de Desenvolvimento de Médio Prazo para os anos 2013-2017” e “proteger interesses fundamentais para o equilíbrio do sistema financeiro angolano”.

E quem eram os titulares desses empréstimos de risco? Essa informação não é pública. Mas informação pública mostra que o Estado angolano através de crédito bancário ao Estado e ao sector público empresarial era devedor de cerca de 33% de todo o crédito bancário em Angola. E que cerca de metade das dívidas do Estado angolano em divisas estrangeiras eram ao BESA.

O Banco de Portugal, por uma questão de respeito pelo Estado angolano e pelo seu Presidente, devia ter aceitado sem reservas a garantia soberana. O Banco de Portugal devia também ter aceitado, sem reservas, a garantia soberana do Estado angolano por uma questão de defesa dos interesses de Portugal. O que fez o Banco de Portugal? Não aceitou a garantia. Comunicou ao BES em 4 de Fevereiro de 2014 que o BES devia apresentar um “parecer jurídico que avalie a validade e efeitos da garantia emitida pelo Estado angolano” e determinou que o BES não deveria “considerar elegível para efeitos prudenciais a garantia emitida pelo Estado angolano até ao cabal esclarecimento das dúvidas que existem sobre a validade, efeitos e âmbito”.

No entanto, o Estado angolano considerou que era necessário manter a garantia e, no dia 1 de Abril, o ministro da Finanças de Angola, Armando Manuel, enviou uma carta à KPMG, que era a auditora externa do BESA (e do BES), a confirmar que a garantia soberana era firme, definitiva e irrevogável.

Com esta carta o Banco de Portugal passou finalmente a considerar válida a garantia soberana de República de Angola.

No dia 27 de Julho, o governador do BNA comunica ao governador do Banco de Portugal (BdP) que admite a possibilidade de “bail in de credores” (perda de parte do valor da dívida pelos credores). Nessa comunicação são também identificados "créditos problemáticos que não estão cobertos pela garantia soberana".

É muito estranho que com uma garantia que cobre os créditos de risco num valor correspondente a 70% de todos os créditos o governador do BNA referir ainda haver mais créditos de risco que não estavam cobertos pela garantia de risco. Para pôr isto em perspectiva, em 2013, em plena crise, o BPI em Portugal apresentou um rácio de crédito de risco de apenas 5,1%.

A partir da comunicação do governador do BNA, o governador do BdP considerou que "a possibilidade de recuperar a totalidade do crédito a Angola se tornou problemática", tendo tido até aí "garantias de que a linha ia ser reembolsada, quando muito com reestruturação das maturidades".

A 3 de Agosto de 2014, o Banco de Portugal toma a medida de resolução do BES, dividindo-o em Novo Banco e BES (“mau”), colocando neste último os activos “problemáticos”.

A decisão pelo Banco de Portugal de colocar no Novo Banco a dívida do BESA ao BES e de colocar no BES “mau” a propriedade das acções do BESA, e com isso manter o BES “mau” como sócio maioritário do BESA, foi uma decisão completamente errada.

Angola, como qualquer país, tem regras para a propriedade de bancos. Obviamente, o Banco Nacional de Angola (BNA), como entidade reguladora, não poderia aceitar que um dos principais bancos de Angola fosse controlado por uma entidade – o BES “mau” – ao qual o Banco de Portugal tinha tirado todo o bom património, inclusive o direito a receber mais de  3000 milhões de euros do BESA. A situação do BESA ficou insustentável. Uma coisa era o BESA dever ao seu sócio maioritário, o que possibilitava que em último caso o BES podia transformar essa dívida em acções do BESA, ficando o BES com ainda maior percentagem do BESA e reforçando os rácios, outra era ficar o BES “mau” praticamente sem dinheiro, dono das acções do BESA, e o BESA dever esses mais de 3000 milhões de euros a outra entidade (o Novo Banco).

Imediatamente no dia seguinte, face à decisão do Banco de Portugal de aplicar uma medida de resolução ao BES, dividindo-o em BES “mau” e Novo Banco, o Banco Nacional de Angola anuncia “medidas extraordinárias de saneamento" ao BESA, justificando essas medidas por não terem sido “obtidas respostas inequívocas dos accionistas do BESA sobre a possibilidade e termos de realização do aumento dos capitais próprios determinado pelo Banco Nacional de Angola”. Essas medidas extraordinárias de saneamento incluíram a determinação que, “logo na fase inicial de implementação, será revogada a garantia soberana emitida pelo Tesouro Nacional”.

Como pode o Governo da República Portuguesa, mais de quatro meses depois dessa comunicação do BNA, continuar a dizer que isto é um assunto privado, havendo uma garantia soberana da República de Angola com assinaturas do Presidente de Angola e do ministro da Finanças de Angola?

Professor universitário

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