Este ano, o último dia de Junho vai ter mais um segundo

Este ano, no último dia de Junho ou no primeiro de Julho (dependendo do fuso horário do local), os relógios do mundo inteiro – e em particular os dos computadores – vão ter de parar durante um segundo. Tal foi a decisão, tornada pública há dias, dos “guardiões da hora” a nível mundial: o Gabinete Internacional de Pesos e Medidas, com sede em Sèvres, nos arredores de Paris.

No início, havia a noite e o dia, a meia-noite e o meio-dia. E as horas contavam-se partindo esse ciclo natural em intervalos regulares: horas, minutos e segundos.

A partir de observações astronómicas, os astrónomos árabes tinham subdividido, já na Idade Média, o dia solar em 24 horas, as horas em 60 minutos e os minutos em 60 segundos. E, com base nisso, em 1874, o segundo fora cientificamente definido como um sexagésimo de sexagésimo de vigésimo quarto da duração média do dia solar. Um dia “civil” durava portanto 86.400 segundos.

Só que, pouco depois, descobriu-se que o período de rotação da Terra não é assim tão regular: varia de forma imprevisível sob o efeito das marés, dos ventos, dos terramotos.

Seguiram-se então definições do segundo com base no ano solar, que também não se adequaram à crescente necessidade de medir o tempo de forma cada vez mais precisa.

Em 1955, foram inventados os relógios atómicos e, uns anos mais tarde, redefiniu-se o segundo com base na frequência da radiação electromagnética emitida por certos átomos. Este segundo “atómico” tinha a vantagem de ser bastante próximo do segundo oficial “natural” (baseado no dia solar) definido em 1874.

Hoje em dia, os segundos atómicos servem para determinar a “hora atómica internacional” (TAI) graças a uma rede de centenas de relógios atómicos, espalhados pelo mundo – e entre os quais o Gabinete Internacional de Pesos e Medidas calcula uma hora média.

Graças a diversos avanços técnicos, as “batidas” destes relógios atómicos têm-se tornado cada vez mais regulares, com os de última geração a demorarem milhões de anos a derivar alguns segundos. E o aperfeiçoamento não pára aí: em Fevereiro, cientistas japoneses anunciaram na revista Nature Photonics ter obtido relógios atómicos que teriam derivado menos de um segundo desde o Big Bang, há 13.800 milhões de anos.

Em 1972, como os relógios atómicos respondiam de facto à necessidade de precisão no cálculo da hora global (nomeadamente nas redes de telecomunicações), a hora oficial na Terra, que até lá tinha sido medida em segundos “solares”, passou a ser medida em segundos “atómicos”. Entrou assim em vigor a escala horária UTC (Tempo Universal Coordenado). Em Portugal, com base na escala UTC, é o Observatório Astronómico de Lisboa "que tem a incumbência legal de manter e distribuir a Hora Legal" portuguesa.

Mas surgiu então um outro problema: é que a rotação da Terra não tem parado de abrandar – em cerca de 1,7 milissegundos por século nos últimos séculos – e, se nada fosse feito, a hora UTC, agora medida em segundos atómicos, iria afastar-se cada vez mais da hora solar “real”. Na altura, ninguém desejava, por assim dizer, que acabasse um dia por “estar sol em plena noite” (mesmo que isso acontecesse daqui a milhares de anos).

A hora UTC, que é de facto a norma através da qual o mundo acerta hoje os relógios e a hora civil, encontra-se sob a alçada da União Internacional de Telecomunicações. E, face ao problema do abrandamento da rotação terrestre, aquela entidade recomendou então que a hora “oficial” dada pelos relógios — a hora UTC — nunca se poderia afastar em mais de 0,9 segundos da hora dada pelo “relógio” natural da rotação da Terra.

Foi justamente por essa razão que começou a ser preciso acrescentar segundos adicionais de vez em quando à hora UTC. Desde 1972, 25 destes “segundos intercalares” foram assim acrescentados. E este ano, mais uma vez, vai ser preciso fazer o acerto dos relógios. Diga-se, já agora, que a hora atómica internacional TAI está actualmente 35 segundos adiantada em relação à hora solar, uma vez que este tipo de acertos entre a hora atómica e a hora solar já tinha começado a ser feito nos anos 1960, antes da instituição da actual hora UTC.

Parar um segundo
Como é que o salto de um segundo se vai processar? A 30 de Junho, quando forem 00:59:59 horas (hora UTC), todos os relógios do mundo que usam o sistema UTC terão de parar por um segundo – ou de marcar um segundo a mais (um sexagésimo primeiro segundo, com os relógios a dar 00:59:60 horas) – antes de passar para a hora seguinte. Isto acontecerá antes da meia-noite nas Américas, após a meia-noite na Europa – e mesmo depois do nascer do sol de 1 de Julho em países como o Japão ou a Austrália.

Simples? Nem por isso. Acontece que os grandes sistemas informáticos – como os serviços de reservas das companhias aéreas ou os servidores das grandes empresas da Internet – vão ter de marcar o passo. Ora, em 2012, quando da introdução do último segundo intercalar, vários destes sistemas tiveram problemas para “digerir” o segundo e acabaram por ir abaixo, alguns durante várias horas.

“Vamos ter de obrigar os nossos relógios a aceitar um segundo a mais num dado minuto”, explicava em finais de 2011 à revista New Scientist Felicitas Arias, astrónoma argentina e directora do Departamento do Tempo no Gabinete Internacional de Pesos e Medidas. E acrescentava: “Estamos a usar um sistema [horário] que interrompe o tempo, quando a característica do tempo é, pelo contrário, a continuidade.”

A seguir ao segundo intercalar de 2012, servidores da companhia aérea australiana Qantas ou de sites como Linkedin, Mozilla, FourSquare ou Reddit foram atingidos por um bug de programação, que até lá tinha permanecido latente (e que portanto ninguém tinha detectado), no sistema operativo Linux utilizado por aqueles computadores. Outros servidores, que utilizavam Java (o célebre software da Oracle), também foram afectados.

Pode isto tornar a acontecer? Ninguém sabe ao certo. Mas na sequência dos problemas com que se defrontou por ocasião do segundo intercalar introduzido em 2005, o gigante online Google divulgou uma forma de contornar o problema, como explicava há dias a CNN online. Trata-se de ir acrescentando alguns milissegundos aos relógios dos seus servidores ao longo do dia fatídico – “o suficiente para evitar o desastre no fim do dia mas que [por serem apenas uns milissegundos] não fazem disparar os alarmes.” Porém, isso também não evita todos os incidentes.

Há anos que a União Internacional de Telecomunicações está a considerar a hipótese de acabar, pura e simplesmente, com os segundos intercalares, deixando a hora UTC afastar-se da hora solar. Em Novembro deste ano, a questão tornará a ser abordada no congresso desta organização em Genebra. Mas o facto é que não há consenso entre os especialistas.

Por um lado, há quem argumente que, com o passar dos séculos, a frequência de introdução de segundos intercalares vai aumentar até se tornar incomportável. Por outro, há quem alerte para o facto que abolir os segundos intercalares fará com que a hora civil acabe por perder a sua ligação com o tempo solar.

Ainda segundo a New Scientist, este último argumento apresenta uma visão algo exagerada das coisas, uma vez que a hora legal em vigor nos diversos países já se encontra desfasada, por vezes de várias horas, em relação à hora solar – o que significa que o Sol não está nem perto do zénite quando os relógios assinalam o meio-dia. Por comparação, a abolição do segundo intercalar levaria, daqui por cem anos, a uma diferença de apenas um minuto entre a hora atómica e a hora solar.

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O relógio a marcar o segundo extra DR