Análise: Cem anos a deitar a língua de fora

Não há verdades eternas, cada santo tem seu dia. Se por um lado Einstein nos deitou uma malcriada língua de fora, por outro espera-se de todos os físicos igual pose fotográfica. Não há teorias finais – há, sim, coisas que vão funcionando até ver, e nem sempre tão bem como se gostaria, se as vamos esmiuçar melhor.

O epíteto de “Novo Einstein” (que a imprensa sensacionalista tanto aprecia) aplicado a quem propõe uma teoria que pretende suplantar a teoria da relatividade é claramente ou ridículo ou um pleonasmo.

Como cientistas somos todos novos Einsteins e Einsteinas: é uma deformação profissional. Somos pagos deduzidos de impostos para fazer esse papel, não das nove às cinco em horário continuado (porque isso não se ajeita ao perfil profissional), mas de noite e dia, até enquanto estamos a sonhar, eroticamente quem sabe. Ninguém duvida que a teoria da relatividade é uma obra de génio, entenda-se bem, mas a maior prova de respeito que lhe podemos oferecer é precisamente pô-la em causa.

O tempo-que-flui tem entrado e saído da ciência, recauchutado ou modificado, ao ritmo das revoluções que vão e vêm. Saliente-se que o tempo que a teoria da relatividade enxovalhou é o tempo fundamental, associado aos processos elementares, às micropartículas puras, limpas de confusões. Não é o tempo sentido pelos sistemas complicados (como nós), que pela sua complexidade exigem outras estruturas, emergentes chamamos-lhes, para as opor a fundamentais. Em sistemas com tantas partes elementares que a floresta é mais importante do que as árvores, necessitamos de conceitos como a entropia, esse pesa-balbúrdias tão útil quando é tudo ao molho e fé em Deus. A entropia, como medida da confusão que sempre aumenta, dá-nos um tempo derivado, emergente, que sem dúvida sentimos à flor da pele, mas que sabemos resultar de uma ilusão criada pela multidão, pelo espírito de rebanho do universo. É um tempo que as partículas elementares nunca sentirão; se calhar é por isso que lhes faltam os sentimentos. Não há electrões apaixonados.

Mas e se esta teoria da relatividade geral centenária fosse ela própria emergente e não-fundamental? E se a descrição da gravidade como as curvas e contracurvas do espaço-tempo fosse apenas uma média estatística, uma medida aplicada a uma multidão de entidades mais fundamentais, tal como a entropia?

Uma das lacunas mais flagrantes da teoria da relatividade geral é a sua incapacidade para namorar com o resto da física. A relatividade geral é um elemento francamente antissocial dentro da confraria das nossas outras teorias. Não fala com a física quântica, esse outro pilar da física do século XX, e segrega a força da gravidade (que venera) das outras forças da natureza: a electricidade, o magnetismo e as forças nucleares. Tanta soberba agasta os físicos e daí as inúmeras tentativas de construir uma teoria de gravidade quântica, combinando a relatividade geral com a teoria quântica, e unificando a gravidade com as outras forças da natureza.

A haver namoro entre a relatividade geral e a física quântica, o espaço-tempo deveria não só ser curvo, como existir na forma de “átomos” (no sentido grego do termo, de peças indivisíveis ou “quanta”). Deveria haver incertezas e flutuações quânticas no seu tecido. Pavores quânticos, de todas as formas e feitios, deveriam afligir os fenómenos gravitacionais, tal como afectam os outros: deveria haver gatos de Scrödinger a miarem em buracos negros, Big Bangs virtuais a saltarem do vácuo, ou maradices ainda piores. E obviamente o próprio tempo e o espaço poderiam ficar equiparados a conceitos emergentes, como a entropia, médias que se tornam relevantes simplesmente porque não temos “microscópios” suficientemente finos para sentir a natureza atómica da realidade subjacente.

Mas a verdade é que tudo isto são quimeras. Ao fim de várias décadas em demanda da teoria da gravidade quântica, a realidade é que ela continua a ser uma miragem. Ideias não faltam mas, sejamos honestos, cordas ou laçadas são todas uma bela porcaria. Não há mal nenhum nisso, desde que a busca seja honesta; censurável é apenas a auto-importância sentida por alguns físicos: há quem insista que estamos no caminho certo, é só uma questão de seguir em frente a fazer contas pela mesma receita durante 200 anos...

Que estupidez! Que rigidez de espírito! Será que se acha mesmo que em 200 anos ninguém iria arranjar nada melhor para fazer do que refinar as nossas ideias? É como esperar que o fado daqui a 200 anos seja uma Gisela João de bengalinha. Daqui a 200 anos muito provavelmente nem haverá fado, ou se o há, sê-lo-á insonhavelmente diferente.

Entretanto, e com menos arrogância, a infrutífera busca continua. No reino do faz-de-conta em que os físicos vivem tudo é possível. O Big Bang pode ser um mero biombo que tapa um além. As constantes universais podem ser fluidas e variáveis. O espaço-tempo pode ser uma média de algo mais fundamental, polvilhado de quanta, espaço em grão, tempo em colar de pérolas. Tudo é possível.

Tudo é possível, tudo pode é estar errado. Fica esta sensação de que andamos a fazer literatura de cordel ao pé do gadelhudo. Não que a relatividade geral não tenha deficiências, mas o que temos feito para as colmatar é bem pior. Ao longo destes 100 anos deitámos-lhe a língua de fora vezes sem conta, e no fim acabámos aos molhadíssimos beijos na boca ao homem.

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A icónica foto de Albert Einstein a mostrar a língua a 18 de Março de 1951, o dia do seu 72.º aniversário AFP