Reportagem

“Se ponho luz, ainda aparecem aí a dizer: ‘Quem mandou?’”

O alecrim e o tomilho não disfarçam o cheiro a fumo entranhado na casa de granito tosco. É uma casa pequena, apenas um quarto a dar para uma cozinha, sem chaminé, nem luz, nem água, nem gás, nem chão fiável, só alguns móveis e a lareira que Olga Ribeiro daqui a pouco acenderá.

Nunca teve electricidade. “Antigamente, ninguém tinha”, diz a mulher de rosto redondo, rosado. À luz da candeia, fazia-se muita lida de casa — e até trabalho agrícola. Mudou-se para esta casa aos seis anos, já lá vão 34, mas não a toma por sua. O senhorio morreu. “Os herdeiros não vieram procurar renda. Se ponho luz, ainda aparecem aí a dizer: ‘Quem mandou?’”

Há uns anos, atreveram-se a deitar uma camada de cimento no chão do quarto. O que lhes custou juntar dinheiro para aquilo! Na cozinha deixaram estar a terra e a pedra irregular. Nunca fizeram casa de banho. Lavam-se num balde grande, de plástico, igual ao que outros usam nas vindimas. Nunca fizeram retrete. “É lá fora, ao ar livre”, diz ela. Não têm água canalizada. “Vamos buscá-la à fonte.”

Num canto da cozinha, sobrepõem-se rolos de loureiro que o irmão, António, cortou com o serrote oval, agora pendurado na parede. António não se vê. Anda de roda das três ovelhas. Só Olga está em casa. Foi buscar uma couve penca à horta. Daqui a nada, há-de pôr a panela ferrugenta ao lume, com a couve, um punhado de feijão, três ou quatro batatas e água a cobrir tudo isso.

Não é que o tempo tenha parado, como para aí se dirá. É que a natureza ainda marca o tempo nesta casa gélida, sombria. Levantam-se com o Sol e com ele se deitam, Olga numa cama, António na outra. “A gente não vai estar a fazer serão”, diz ela. “Não vale a pena a gente estar ao frio.” Sobram brechas no telhado, nas portas, nas janelas. “Faço o jantar cedo. De Inverno, às vezes, deixo [comida] do meio-dia para a noite. De Verão não, que é muito calor, a gente não tem frigorífico, estraga-se tudo.”

Se acordam, no breu, com vontade de urinar, pegam num isqueiro, dão uns passos até à cozinha, acendem uma vela ou uma candeia. “Não trago para aqui”, diz ela. “Tenho medo. Pode tombar. Pode arder tudo.” Foi o que lhe ensinou a mãe, Custódia, que está sempre a olhar, com os lábios comprimidos, as sobrancelhas levantadas, por cima das bonecas que Olga não chegou a usar.

Além da fotografia da mãe, nas paredes por revestir só se vê uma cópia de Mona Lisa, a mais notável obra de Leonardo da Vinci, a fazer as vezes de mãe de Jesus. A mãe morreu nova, já lá vão 20 anos. O pai, Albino, dava-lhe mau trato. “Ele batia-lhe e ela, se tivesse uma malga de sopa, tirava à boca para lhe dar. Ela dizia que mais valia a gente fazer bem a quem nos faz mal.”

Só podem rezar para que os corpos não lhes peçam alívio esta noite. Não têm petróleo para a candeia pousada na lareira. Nem uma vela lhes resta no armário. Nada para os iluminar, se nesta noite precisarem de sair da cama. “Não faltava quem me fiasse, mas a minha mãe disse: ‘Olha rapariga, um dia que eu morra não ponhas dívidas. Conforme a gente não tem para hoje, não tem para amanhã.’”

Está quase, quase vazio o armário da cozinha. Um quilo de arroz, meio quilo de massa, um resto de farinha, uma mistura de ervas — hortelã, tomilho, orégãos, carqueja, chicória, tojo, sempre-noiva, funcho, poejo, eucalipto — que ela toma, em vez dos medicamentos que o médico lhe receitou para a vesícula. “Isto faz o efeito”, diz ela. “Dá para a vesícula, para os intestinos, para o estômago, para os rins, para tudo. A gente tem de se governar conforme as possibilidades.”

Na casa de granito tosco só entram os 267,22 euros mensais de rendimento social de inserção (RSI). Olga não percebeu, ao fazer o anual pedido de renovação, que passaria a recebê-los por transferência bancária. “Fiquei o outro mês sem dinheiro. E este igual. Tinha arroz e assim. Agora está a acabar tudo”, diz ela. A técnica que acompanha a família, no Centro Social de São Martinho de Soalhães, há-de ficar espantada quando souber que já nem vela têm no armário.

Olga parece estar a anos-luz do mundo regrado e apressado que a faz ir a Amarante inscrever-se no centro de emprego e prometer tentar inserir-se no mercado de trabalho. “Andei para aí três anos na escola, mas não aprendia”, diz ela. “Não ia muito. A minha mãe dizia que eu tinha de trabalhar.” E muito tem trabalho em casa e na horta.

Mora em Marco de Canaveses, a 56 quilómetros do Porto, a 44 minutos de carro, conduzindo pela auto-estrada, mas mal sai da terra, pouco sabe sobre o país, há tanto rendido ao frigorífico e ao microondas, à rádio e ao televisor, ao telefone e ao computador. Teve um rádio, pequenino, a pilhas. Há uns dois anos, a meio da tarde, alguém rebentou o ferrolho da porta e levou-lho. Não sente falta do zumbido planetário. “Às vezes, mais vale não saber o que se passa”, diz ela. “Há muita gente que diz que vem para aí o fim do mundo. Não sabendo, a gente não fica triste.”  

Mantém um certo controlo sobre o tempo, apesar de tudo. “Se a gente não tem as horas, anda como os tolos”, diz ela. Tem um relógio de pulso numa gaveta. E ouve o sino da igreja de São Martinho de Soalhães. “Se a gente não tem as horas, a gente não sabe quando há-de ir para o autocarro e assim.”

A variável “electricidade” não fez parte dos Censos 2011. Em 2001, 99,5% dos alojamentos de residência habitual já a tinham. Agora, não há localidades sem luz, garante a Energias de Portugal — EDP. Apenas casas isoladas ou apanhadas pela pobreza extrema, como esta que Olga partilha com o irmão, vigiada por um cão e um gato, ajudados por um garnisé e um par de rolas. 

Não é a única casa sem instalação eléctrica, canalização ou saneamento básico em Marco de Canaveses. Outros casos são conhecidos no Centro Social de São Martinho de Soalhães, que acompanha 195 famílias beneficiárias de RSI. O concelho não tem vagas na habitação social, tão-pouco prática de renda apoiada, a menos que esteja perante uma emergência de uma família com crianças.

Muitos tem a equipa técnica sugerido a João Monteiro, homem magro, de rosto encovado, que arrende outra casa. “O que ganho não me dá para pagar uma renda”, diz ele. São 178,19 euros, o máximo previsto de RSI para quem vive sozinho. Parece-lhe impossível pagar com isso renda, água, luz, alimentação e outros gastos. Dizem-lhe que outros conseguem, que ele se acomodou, que resiste, mas ele não se fia. Nada paga pela casa de granito tosco que descobriu devoluta, com uma manta de silvas. É só um quarto, à justa para a cama, uma cozinha e uma cozinha de lenha. Pensar que já trabalhou como electricista numa fábrica de confecções. Parece-lhe que foi noutra vida e, de certo modo, até foi. “A vida não correu como eu queria”, diz ele. “A vida não correu como eu queria..”

Era o solteiro de sete irmãos de uma família que se mudou de Marco de Canaveses para a Maia. Quando comprou casa, o irmão mais velho convidou os pais, então doentes, envelhecidos, para irem morar com ele. Não disse a João que os acompanhasse. E ele sentiu-se rejeitado, triste. Virou as costas à família e regressou à terra. “Encostei-me a um primo”, diz ele.  

Já lá vão 18 anos e o desgosto ainda pulsa dentro dele. Não era só a família. Era também a mulher com quem namorou nove anos. Ele queria muito casar-se com ela e ela estava sempre a adiar. Num domingo, foi ter com ela ao café. Ele pediu um café e meio bagaço. Ela pegou no copo de bagaço e despejou-o no cinzeiro. “Aquilo deu-me uma volta tão grande. Levantei-me, nem uma nem duas. Fui ao balcão, pedi outro bagaço. ‘Este eu pago. Aquele paga quem o botou no cinzeiro.’”

Saiu agoniado. Era como se, de repente, todo o nevoeiro do amor se tivesse dissipado e ele pudesse, por fim, ver que ela já não queria casar-se com ele. Perdeu o gosto pela vida. “Ia para o trabalho, não tomava o pequeno-almoço. Era café e bagaço. Ao meio-dia, não comia. Bebia. Só ao meio da tarde comia uma sandezita. Às vezes, ia para cima de uma prancha e tremia. Era a fraqueza a pegar em mim”, diz ele. Foram deixando de o chamar. Onde já vai a sua saúde, agora. Onde já vai a sua arte.

Achava que não podia perder tempo à espera dela e, afinal, durante anos a fio não fez outra coisa a não ser esperar por ela. “Custou-me a sair”, diz ele. “Ainda não saiu. A dor ficou aqui dentro.” Já nada pode fazer. Há dois anos, um irmão dela telefonou-lhe. ‘Olha, João, a São morreu.’”

O telemóvel é a sua ligação ao mundo. Carrega a bateria em casa do primo ou das vizinhas, conforme lhe vai dando jeito. Dá-se bem com elas, “graças a Deus”. Uma oferece-lhe almoço ao domingo. “Ela vê a porta aberta e diz: ‘Ó João!’” Ainda agora, quando se atrasou a tratar da renovação do RSI, foram elas que o safaram. “Dez de um lado, 20 do outro. Quando receber, vou levar, o que é que não é tudo de uma vez.”

Um vizinho dá-lhe água. Uma vizinha já chegou a dar-lhe luz, mas isso foi sol de pouca dura. “Era uma lâmpada”, diz ele. “Trouxe um televisor. Só funcionou uma noite e meio dia. O filho dela disse que era muita luz. Tirou-me o fio. Botei a televisão numa caixa e dei-a a uma rapariga que se ia casar.”

Tem um rádio amarrado ao catre de ferro preto, mas não o liga há 16 dias. Não tem tido dinheiro para as pilhas. Impõe-se um silêncio só interrompido pelo canto do galo da vizinha da frente ou o crepitar da lareira. Às vezes, vai a casa do primo, senta-se a conversar ou a ver “um bocadinho de televisão”. Outras, deita-se ao mesmo tempo que a o galo e as galinhas da vizinha. Tem estado um frio danado. E o tempo custa mais a passar quando não se tem nada que se lhe meta dentro. “A vida não correu como eu queria. A vida não correu como eu queria..”  

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