O regresso aos relógios antigos

A loja quase minúscula gira à volta de três vitrinas, um balcão e relógios. Muitos relógios. Grandes, pequenos, de pulso, de pé. No Lugar do Tempo, a expressão “o tempo é o que se faz com ele” assenta como uma luva. O dono, Pedro Machado, 49 anos, formou-se em design gráfico no IADE, mas sempre se interessou por mecânica: “tudo o que é mecânico mexe comigo. A minha família sempre esteve ligada aos automóveis. Depois do curso fui trabalhar para a Guerin, que tinha cursos de formação profissional, e onde aprendi a reparar motores de automóveis”.

Numa vida de “muitas voltas”, saltou dos motores e voltou à ilustração. Ocupou a função de gráfico residente no Teatro Municipal de Almada e aí conheceu um importador de relógios russo: “Era representante da Palhot e tinha uma relojoaria lá perto. Fui lá arranjar um relógio e começámos a falar. Depois de ter percebido o que eu fazia pediu-me para o ajudar no lançamento oficial da marca em Portugal”. O lançamento correu bem e a directora de exportação da marca convidou-o a visitar a fábrica em Moscovo: “Pediram-me logo para fazer uns expositores para uma feira em Hong Kong”. Passou dois anos na capital russa, e a aprender a mexer a sério em relógios.

“Comprava relógios antigos nas feiras e reparava-os na fábrica. Entrei mais dentro da mecânica. O primeiro relógio que desmontei foi na Rússia”. Apaixonou-se de imediato: “Foi a partir do momento que comecei a perceber como aquilo tudo funcionava”. Voltou de Moscovo e foi trabalhar numa oficina de recuperação de relógios, com um mestre. Ficou dez anos a aprender e aperfeiçoar aquela que viria a ser a sua arte, até ter adquirido competências suficientes para abrir a sua própria oficina. Desse tempo lembra-se que para ele “o mestre era um deus na oficina”.

Pedro escolheu especializar-se no restauro de relógios antigos: "Não gosto muito dos modernos. Aí a ideia é mais substituir peças". Os antigos são um desafio maior: “É a possibilidade de poder reparar, recuperar a máquina. Um bocado como nos carros. A mecânica é mais desafiante, mais robusta”. O que gosta nestes objectos é ver a complexidade com que “aliam a forma à função”. “É absolutamente cativante. Os relógios têm uma mística muito especial”, de várias “disciplinas”: “Reúne escultura, grafismo, mecânica… Um bocado como a ópera está para a música.”

Há seis anos, abriu a sua própria loja, no bairro de Campo de Ourique. O Lugar do Tempo começou por ser um espaço de coleccionismo e relojoaria em simultâneo. No entanto durou pouco tempo: “Começou a entrar tanto trabalho que esqueci o coleccionismo e tive que me agarrar à bancada”. À bancada, no singular: “Enquanto nos carros são precisas instalações grandes, muito investimento em ferramentas, nos relógios basta uma salinha pequena”.

Aproveitou os restos de materiais de relojoarias que iam fechando: "As ferramentas antigas eram de muita boa qualidade e a maior parte delas podiam ser arranjadas, tal como os relógios”. Estar bem equipado é fundamental. “A pior coisa é estarmos a reparar um relógio, precisar de uma ferramenta, e não a ter. É um desespero. Há muito tempo não tinha uma chave especial para afinar os Rolex, uma chave estrela. Agora já tenho”. Também nas ferramentas a antiguidade é um posto: “Na loja utilizo um torno mecânico antigo a pedal metido na bancada. São ambos dos anos 1930. Na oficina tenho um torno moderno, a motor, mas gosto mais do da loja. Temos um controlo diferente.”

Nestes poucos anos, viu o negócio mudar. As marcas já não vendem peças para fora, querem acabar com a relojoaria independente: “Antes ia à Omega e comprava as peças que precisava. Hoje, já não, querem ser eles a reparar os relógios. Em alguns países, como a Austrália, ainda se consegue comprar, mas são uma excepção”.

A procura por relógios antigos tem aumentado na última década: “Dantes eram de uso diário, de corda, toda a gente tinha um. Havia imenso trabalho para os relojoeiros. Isso acabou com os relógios de pilhas nos anos 60 e a massificação. Era mais simples comprar um relógio novo do que mandar reparar um antigo. Só nos anos 90 é que o relógio mecânico ressurgiu. Hoje há cada vez mais procura, tanto a nível de coleccionismo como de pessoas que querem uma peça diferente, que tenha qualquer coisa lá dentro que não um gadget”, afiança Pedro.

A personalização destes objectos - uma peça montada à mão, afinada por alguém - está na base deste regresso ao passado: “Esta foi a principal mudança na indústria. Também ajuda o facto de os relógios serem quase a única jóia usada por homens”, sublinha o relojoeiro. 

Pedro Machado não tem dúvidas sobre as máquinas de eleição: cronógrafos Breitling dos anos 40 ou 50, Rolex das décadas de 1910, 20 e 30, e relógios ingleses do século XVIII, a suíça Certina (“tem uns movimentos fabulosos e a qualidade da manufactura é fenomenal”), e o primeiro Speedmaster, que é o relógio mais conhecido da Omega, de 1957. “O modelo actual tem o mesmo design do de 1965. Quando é bem conseguido é intemporal”.

Os breitlings, rolexs e omegas são também os relógios que mais aparecem para reparação. “Toda a oficina está vocacionada para esse tipo de relógios”, com direito a algumas excepções: “Não quer dizer que não pegue em relógios modernos, de vez em quando faço-o. Mas quando vejo que não, encaminho-os para colegas que estão mais à vontade com máquinas modernas”.

Tenta ter sempre solução para quem entra na loja e arrepia-se quando lhe pedem para meter uma máquina a pilhas dentro de um relógio mecânico. “Vai contra tudo aquilo em que acredito!” Mas o que acontece mais frequentemente é pedirem-lhe para reparar o relógio de um avô. “Pergunto sempre se querem de volta um relógio novo ou se o deixo tal como se lembravam dele no pulso dos familiares. A maior parte opta pela segunda. Limpo a máquina toda, fica com um aspecto “lavadinho”, mas nota-se que os anos passaram”. O designer gráfico-relojoeiro também tem um. “Deixei-o como era. Só lhe reparei o movimento”.

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