O maquinista, o carteiro e o gestor: retratos de veteranos no trabalho

 


Não passava de um miúdo. Os pedaços de história que guardou daqueles primeiros tempos não mentem. No cartão do clube de futebol dos ferroviários vê-se a fotografia de um rapaz de tez clara, cabelo muito arranjadinho. Entrou na CP com apenas 16 anos e passou os últimos 33 a conduzir comboios pelo país. Os tempos mudaram muito desde que entrou nos carris.

A vida obrigou-o a agarrar-se cedo ao trabalho, ainda com 14 anos, numa fábrica de cerâmica, tijolos e telhas, em Ponte de Sor (Portalegre), onde nasceu. Esteve um ano à espera para entrar na transportadora ferroviária, mas lá o chamaram, para aprendiz de electricista no Entroncamento. Quando completou 25 anos, a idade mínima definida pela empresa, concorreu logo para maquinista. Depois de nove meses de curso, pegou no primeiro comboio suburbano, na linha de Sintra.

Fez os regionais e ainda chegou a conduzir um Foguete, que fazia a viagem entre Lisboa e o Porto em mais de quatro horas. Mais do que a velocidade, o comboio, que acabou por ser substituído, marcou uma época, por pequenos luxos como o ar condicionado e o serviço de refeições a bordo. Hoje, no Intercidades que faz chegar a Santa Apolónia, com seis minutos de atraso, o percurso leva pouco mais de três horas. Naquela altura, “os comboios não iam além dos 120, 140 quilómetros por hora”, conta. Hoje o Alfa Pendular vai até aos 220, fazendo a viagem em 2h44.

É entre este comboio e o Intercidades que Lúcio Basílio divide as semanas, seja no Porto, em Lisboa, em Faro, na Guarda ou em qualquer lugar onde chegue a linha de caminhos-de-ferro. Se quisesse, no início do ano já saberia o que estará a fazer no dia de Natal, tal é a programação milimétrica das escalas da CP. Mas o esquema é um emaranhado de condicionalidades. Olha-se para o primeiro serviço e tudo depende do dia da semana, se é feriado ou véspera de feriado. “Demora-se algum tempo a entrar nisto”, explica.

Pelo caminho, “perde-se muita coisa”. Ver os filhos a crescer, ter vida social, passar férias com a família, jantar fora no dia de aniversário. “É uma opção que se faz. Podia ainda estar na linha de Sintra e ia dormir todos os dias a casa, mas quis mais”, diz. Não que receba muito melhor, a não ser as ajudas de custo quando tem de dormir fora e os prémios pagos a quem tem mais horas de condução e mais quilómetros percorridos. Foi quando esteve nas oficinas, ainda antes de virar maquinista, que se apaixonou realmente pelos comboios. “É preciso gostar muito disto.”

E nem todos os dias se gosta. Nos últimos 33 anos, os comboios que Lúcio guiava colheram quatro pessoas, das quais um antigo colega do tempo das oficinas. O último acidente aconteceu há sete anos. “Nunca me senti incapaz de continuar a conduzir. Também tudo depende se é suicídio ou descuido. A reacção é sempre diferente. Se é descuido, ficamos sempre a pensar se conseguíamos ter evitado, se podíamos ter buzinado mais cedo…”

Antes os maquinistas nunca viajavam sozinhos. Tinham uma espécie de co-piloto, a que chamavam condutor, mas que não conduzia os comboios. “Ajudavam-nos a ver os sinais, tinham uma folha com os registos das paragens onde anotavam o tempo que demorávamos”, conta Lúcio. Esse papel já foi entregue às próprias máquinas há muitos anos, com sistemas que, através de balizas instaladas no carris, dão informação sobre a velocidade máxima e a cor dos semáforos. Quando alguma das indicações não é respeitada, o comboio pára automaticamente.

Ao longo de toda a viagem, Lúcio tem de ir dando indicação de que está em condições de levar o comboio a bom porto. Uma alavanca no pé e alguns dos comandos que acciona com as mãos vão dando sinais ao centro de controlo. É o chamado sistema de homem-morto, que faz soar um alarme quando o maquinista deixa de dar resposta.

É nestes dois metros quadrados que passa grande parte do tempo. Tanto tempo que já nem repara no que está lá fora. "Passamos tantas vezes no mesmo sítio que já nem ligamos." Dos passageiros também pouco sabe. Vê-os entrar pelo espelho retrovisor, mas com a única preocupação de não deixar ninguém apeado. É um caminho solitário.

Lúcio, que está já há 42 anos na CP, garante que hoje as condições são muito melhores do que quando começou nesta vida de transportar passageiros. Antes, as cadeiras em que conduziam não estavam presas ao chão. “Bastava um solavanco e lá íamos.” E não havia ar condicionado. Mas também há regalias que ficaram pelo caminho: como os prémios que a empresa pagava quando um maquinista encontrava fendas nos rodados ou um carril partido.

Hoje, há 743 maquinistas na CP (excluindo os que conduzem comboios de mercadorias). Lúcio, que hoje tem 58 anos, é o 16.º na lista de mais antigos, em termos de anos de serviço. Por regra, faz uma viagem a cada dia da semana, às vezes mais. A empresa ainda tem alguns dormitórios espalhados pelo país. Uma espécie de residências, onde antes se dormia em camaratas e se andava de lençóis às costas, e hoje há quartos individuais, com casa de banho privativa.

Os maquinistas, diz, foram ganhando outro estatuto com o passar dos anos. “Hoje são mais reconhecidos. Houve um tempo em que ganhavam o mesmo do que um encarregado florestal e não se pedia tanta qualificação técnica”, conta. Já não entram novos profissionais para o leme dos comboios há 20 anos. São “sempre os mesmos”, numa actividade que obriga “a conviver mais com os colegas do que com a própria família”.

Lúcio chegou a concorrer para inspector, nos escritórios em Lisboa, mas a experiência só durou três meses. “Quis voltar à linha”, diz. Deixar a vida de maquinista, profissão que chegou a ter uma idade de reforma especial aos 55 anos, não é coisa que lhe passe pela cabeça agora. “Ainda me esperam uns bons anos pela frente, se houver saúde.”

É uma corrida contra o tempo. Pega num molho de cartas. Pára a carrinha. Abre a porta. Corre até à caixa do correio. Volta. A carrinha arranca. Cem metros à frente, novo molho de cartas. A carrinha pára. E ele volta, numa questão de segundos, de mãos vazias. A agilidade é tanta que engana. Afinal, é o carteiro mais velho do país.

Jorge Macedo começou a distribuir correio aos 20 anos e só a saúde o afastou, temporariamente, desta vida. Teve uma leucemia. Curou-se. E voltou aos giros logo a seguir. Tem 63 anos, mas ninguém lhos daria. Distribuir cartas ajuda. “É como ir ao ginásio todos os dias”, diz.

Mas não é só o corpo que lhe pede destreza. A verdadeira ginástica, que ele faz parecer fácil, é conhecer toda a gente pelo nome. A Dona Armanda, o Senhor António, o Jorginho… “Este já está, agora vamos ali mais à frente. São 50 metros, mas temos de fazer de marcha-atrás”, avisa. Podia fazê-lo de olhos fechados.

Está há 42 anos nos CTT, sempre em Vila Real (Trás-os-Montes), onde nasceu e ainda hoje vive. É o carteiro mais velho a fazer distribuição, embora haja outros com mais anos de serviço. Mas nem sempre andou a distribuir correio. Aos 14 anos, começou a trabalhar em mecânica, foi electricista e, mais tarde, guarda-fios dos T.L.P (hoje Portugal Telecom), uma espécie de polícia dos cabos telefónicos.

A 9 de Julho de 1973 entrava nos CTT. E porquê carteiro? Nem sabe bem explicar, embora diga que “era trabalho mais leve e menos sujo” do que os que tinha experimentado antes. Mas o que gostava mesmo era de ser electricista. Se ao menos o irmão não se tivesse desentendido com os sócios da empresa, hoje não estaria na aldeia da Raia, a seis quilómetros de Vila Real, a distribuir correio. “O que lá vai, lá vai”, desabafa.

E o que lá vai são mais de quatro décadas a distribuir cartas. Primeiro, de mala de cabedal às costas e motorizada. Agora, numa carrinha com a mala a meio gás. No início, antes de sair para o giro, juntava-se com os colegas à volta de um contentor, com cerca de três metros de largura, a separar o correio. “Às vezes, demorávamos duas horas com isso”, conta. Agora, metade desse trabalho é feito por uma máquina.

Antes de deixar o centro de distribuição, organiza o correio por urgência e destino. Cada um dos 28 carteiros (22 dos CTT e seis subcontratados a uma empresa externa) tem o seu giro. Quando algum falha, os restantes dividem o trabalho. Chegaram a ser 31 nos quadros, numa altura em que havia um refeitório e até uma creche no edifício. A Vila Real chegam, em média, 23 mil cartas por dia, 400 objectos volumosos e 1300 cartas registadas.

Antes de sair, Hugo Teixeira, o chefe do centro de distribuição, mostra-lhe uma relíquia. É o livro de ponto de 1978. E lá está a assinatura dele, com entrada às 8h30. Hoje é um dia excepcional. São quase 10h quando Jorge começa o giro 140. Há-de sair lá para as 16h30, mas o tempo é precioso. “Se perco cinco minutos aqui, tenho de os ganhar noutro lado, para conseguir entregar tudo”.

É por isso que corre até às caixas do correio e desespera a tocar às campainhas. “Mais um registo [carta registada]. É o que eu digo. O tempo que se perde nisto…”, lamenta. Quando a porta não abre, é preciso preencher avisos. “Antes não havia tanto disto. Ando sempre com o tempo contado por causa dos registos”.

Mas há outras mudanças que não passam despercebidas mesmo a quem nunca distribuiu correio na vida. Desapareceram praticamente as cartas escritas à mão, “as que os namorados mandavam ou os filhos emigrados”. Agora, é quase tudo contas para pagar. É uma questão de tempo? “Não, é mais de gosto”, acredita. De gosto e de conveniência, que “isto agora com os computadores ninguém escreve a ninguém, é uma pena”.

O trabalho antes também se despachava mais cedo porque se fazia de mota, sem este constante entra e sai da carrinha. E havia menos pessoas, garante Jorge. “Há cada vez mais gente. É só casas por todo o lado. Às vezes nem sei se mora lá alguém, mas há cartas para entregar”.  

Na aldeia de Raia, há muita habitação nova ou prestes a nascer. Jorge sabe-lhe de cor as curvas difíceis, os becos sem saída. Só faz este percurso há três ou quatro meses, tempo suficiente para também lhe saber de cor os moradores. Alguns vêm receber as cartas em mão, outros acenam de longe. Conhece-os todos. A eles e aos filhos, aos netos, aos irmãos e aos primos.

E é bom que assim seja. A maioria do correio é indecifrável aos leigos, porque na morada nada mais vem do que Raia, Lugar da Raia, Raia – Mateus. Sem nome de rua, sem número de porta. E nesta aldeia distribui-se cartas “casa sim, casa sim”. O 713 leva-o ao passado distante, ao tal tempo em que o giro se fazia de mota, sem ser preciso o constante entra e sai. Pela primeira e única vez em todo o percurso, encosta a carrinha à caixa do correio, abre o vidro e deixa a carta. “Está a ver? Era muito mais fácil antigamente”.

O giro continua pelo dia fora. “A parar em todo o lado. Todo o lado”, assegura. Tão cedo não deixará de ser assim, porque, enquanto houver saúde Jorge continuará a ser o carteiro mais velho do país. “Vou para casa fazer o quê? Só se for para envelhecer mais depressa”.

A ligação entre Aníbal Ferreira e a Unicer começou cedo, quando ainda estudava. A empresa, onde o pai trabalhava, escolheu-o para receber um prémio de mérito escolar. A homenagem marcou-o “profundamente”. Ainda hoje diz que esse elo prematuro foi um dos motivos que o fez ir ficando, já lá vão 43 anos. Nas áreas por onde passou, viu as mudanças na cervejeira do Porto de um plano superior. Do tempo em que os discos duros ocupavam o espaço de uma mesa até aos dias de hoje, em que uma Super Bock é vendida e as receitas entram de imediato no sistema de vendas.

Na Unicer há apenas duas pessoas mais antigas do que Aníbal, embora a empresa ainda tenha dez pessoas com mais de 40 anos de casa. A carreira deste gestor correu sempre nos bastidores da cervejeira, mas começou numas férias escolares, numa experiência de três meses na área de manutenção de equipamentos eléctricos.

O 25 Abril veio quando estava há apenas dois dias na tropa e trouxe-lhe um vínculo mais sólido à Unicer. “Dentro da empresa houve várias movimentações para que os contratados passassem aos quadros. Acabei por receber uma carta a perguntar se estaria interessado em vir trabalhar”. E assim foi. Em 1976 entrava definitivamente na cervejeira, de onde não mais saiu, apesar de ter sido aliciado.

O que fez ficar? Além do tal elo prematuro dos tempos da escola, também a mobilidade interna que havia dentro do grupo nortenho. “Permitiu-me passar por muitas áreas ao longo da carreira.” Esteve no departamento de compras, foi programador, mais tarde auditor interno na vertente de informática e pioneiro em novas áreas, como a de gestão de fluxos, que tratava das encomendas de clientes nacionais e internacionais e dos impostos indirectos sobre a cerveja. Desde 2009 é gestor de processos e projectos especiais na direcção de logística.

Aníbal lamenta que se tenha perdido um pouco esta cultura, relembrando os tempos em que a progressão na carreira se fazia com base em testes que garantiam que um bom técnico tinha capacidade de liderança. “Até ao final da década de 1990, esta empresa era muito familiar. Havia muita preocupação em desenvolver as competências dos colaboradores com formação profissional e o reconhecimento do mérito.” O que mudou? “A cultura. Tornou-se muito mais focada em proveitos e resultados”, continua, ao recordar a reestruturação profunda que a Unicer sofreu e que levou à saída de muitos trabalhadores. “De repente, as pessoas começaram a pensar: 'será que amanhã estou cá'?”.

Os tempos mudaram a uma velocidade furiosa. E Aníbal recorda-se sobretudo do momento, na década de 80, em que os antigos cartões perfurados, utilizados para fazer programação, foram substituídos pelos discos duros, cuja leitura tinha de ser feita por uma máquina que parecia um fogão. Mas o que mais guarda são os tempos em que “se vestia a camisola” e que mudaram “de um dia para o outro”.

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