Entrevista

“Temos mais tempo, mas não sentimos que o temos”

Professora de sociologia na London School of Economics, Judy Wajcman publicou recentemente um livro onde analisa a relação com as tecnologias e a forma como sentimos o tempo. Em Pressed for time – The acceleration of life in digital capitalism, sublinha que as pessoas não são reféns das tecnologias; logo, que não são estas as culpadas de sentirmos que andamos sempre a correr. A obra, que evita o facilitismo das ideias a “preto e branco”, evidencia factos como estarmos a viver uma cultura que valoriza o estar atarefado e a hiperprodutividade.  Muitas vezes, com o devido contexto, levanta mais questões do que dá respostas. Resumindo: faz pensar, algo que requer tempo.

No seu livro refere que há uma espécie de paradoxo, com as pessoas a culparem os produtos tecnológicos pela pressão, pela noção de falta de tempo, mas, ao mesmo tempo, é a esses mesmos produtos que se recorre para tentar aliviar essa pressão. A tecnologia está, de facto, a acelerar as nossas vidas?
A tecnologia que temos reflecte a sociedade, não a molda. E isso é argumento contra a ideia de que somos vítimas da tecnologia. A hiperactividade não existe por causa dela. A tecnologia só existe a partir do momento é que é fabricada, e lhe damos um sentido.

Mas acha que não estamos a usar tecnologia da forma mais correcta?
Uma questão passa pelo facto de a tecnologia estar a ser concebida, de uma forma geral, em Silicon Valley, por empresas cujo objectivo é o lucro. Mesmo que digam que estão a querer transformar o mundo num sítio melhor e que estão a construir estas tecnologia a pensar em nós, o seu objectivo é conceber produtos que dêem dinheiro. Os cidadãos deviam estar mais envolvidos em todo esse processo de criação e concepção. Isto para termos diferentes produtos tecnológicos, mais afastados da noção de que mais velocidade é igual a progresso, que melhores vidas dependem da banda larga mais rápida, de que é isso que queremos, em vez de se pensar, de facto, em ajudar a termos melhores vidas e que problemas sociais é que queremos resolver.

Como é que os cidadãos podem estar mais envolvidos nesse processo?
Primeiro, há um problema no facto de os engenheiros que estão em Silicon Valley serem, de uma forma geral, muito jovens, predominantemente brancos, embora haja alguns indianos, e do sexo masculino. Se houvesse mais diversidade, é provável que tivéssemos tecnologias diferentes. Depois, os governos devem ter um papel mais activo. Devem estar mais envolvidos na concepção dos produtos tecnológicos e facilitar o tal envolvimento dos cidadãos, nomeadamente através da educação ligada à área de ciência e tecnologia. Devia haver mais organismos onde se discutisse, de forma colectiva, os caminhos da investigação e desenvolvimento dos produtos. É sabido que muita da investigação e desenvolvimento usada em Silicon Valley tem por base tecnologia militar, como os drones, que podem entregar pizzas. E podia-se estar a pensar em áreas como a energia, problemas sociais, em vez de pensar: “há esta tecnologia dos drones, vamos usar de forma comercial”.

Considera que é errada a ideia de ligar a tecnologia a algo que tem de ser mais rápido?
Sim, quando se pensa que o melhor motor de pesquisa é o que dá resultados de forma mais veloz, mas um outro motor de pesquisa, menos rápido, com diferentes algoritmos, pode dar outro tipo de respostas ligadas à informação que se procura, com outro tipo de conhecimento. As pessoas não se questionam sobre porque é que um determinado algoritmo resulta num tipo de informação e não noutro. E o segredo mais bem guardado do mundo é o algoritmo do Google.

Falou do papel das empresas. E em relação ao papel dos consumidores, dos cidadãos? Porque a forma como utilizamos a tecnologia diz algo sobre nós. Quando as pessoas incorporam essa necessidade de velocidade, o que é que diz delas próprias?
No meu livro tento fugir à polarização, de que algo é totalmente bom ou totalmente mau. De que o problema se resolve com uma desintoxicação tecnológica. Numa sociedade que valoriza a velocidade, as pessoas tendem a usar a tecnologia nesse sentido. Quando se olha para os telemóveis, para smartphones, por exemplo, as pessoas querem estar em estrito contacto com a família e com os seus amigos. Quando os telemóveis surgiram, pensei que era mais uma ferramenta de trabalho. Como antiga marxista que sou, imaginei logo que seria uma forma de intensificar o trabalho. Mas todas as pessoas compraram telemóveis, de uma forma tão rápida, e verificou-se que querem estar em contacto com a família e amigos quando estão à espera do autocarro, por exemplo, para saber se é preciso ir ao supermercado ou se as crianças estão bem.

Mas os telemóveis vieram intensificar o trabalho, certo?
Sim, é verdade. Mas não se pode pensar no problema do tempo e das pessoas como uma questão individual. É um problema colectivo, ligado à forma como a sociedade está organizada: espera-se uma resposta rápida, que a pessoa esteja disponível, etc. Tem de se lidar com essas questões de forma colectiva, alterando as práticas do local de trabalho. Em termos históricos, os telemóveis são algo muito recente, tal como o email, e já usamos o email de forma diferente da que fazíamos há dez anos. Com o tempo as pessoas vão alterar a forma como utilizam as diferentes tecnologias.

E essa alteração virá no sentido de abrandar o ritmo na forma como se usa os telemóveis, desligando mais vezes ou não atendendo todas as chamadas?
Não sei se é uma questão de mais ou menos velocidade, mas antes de usar as tecnologias para ter tempo para as coisas que queremos fazer. Em muitas famílias, os dois membros do casal trabalham. Face ao passado, a articulação entre os membros da família é mais complicada. E o telemóvel funciona para organizar e proporcionar tempo para estar com o seu parceiro ou com os seus filhos. Pode-se chamar tempo de qualidade, o tempo que se pretende ter.

Diz que não podemos olhar para o tempo apenas como as 24 horas do relógio, mas também como espaço, e que há uma dessincronização entre as pessoas. Por exemplo, entre o pai e a mãe, que estão cada um no seu trabalho, e o filho, que está na escola. Isto contribui para a sensação de estarmos sempre com pressa?
Uma das coisas de que se fala muito é de as fronteiras entre lazer e trabalho estarem a mudar e julgo que isso é verdade. A discussão tem sido sobre como a tecnologia levou o tempo de trabalho a colonizar o tempo em casa e o tempo de lazer. Mas, por outro lado, a tecnologia permite que as pessoas, quando estão no trabalho, estejam em contacto com a família e amigos. É um resultado do capitalismo industrial termos uma separação rigorosa entre trabalho e lazer. Mas talvez dentro de 50 anos seja mais normal não haver esta separação, poder passar algum tempo no trabalho a fazer compras ou outras coisas na Internet, e compensar isso com trabalho à noite. Há um conceito de flexibilidade - que é a flexibilidade dos empregadores - que é estarmos sempre disponíveis para trabalhar. E há a flexibilidade que nós queremos, que é termos mais controlo para organizar os diferentes aspectos das nossas vidas.

A tecnologia pode tornar esse tipo de flexibilidade possível na generalidade dos países?
Depende do que forem as condições de trabalho e essas não são resultado de smartphones e gadgets. A questão tem muito mais a ver com a desregulação dos mercados de trabalho.

A grande intensidade do multitasking no local de trabalho ajuda à sensação de estarmos pressionados pelo tempo?
O multitasking é um mito. Os estudos mostram que as pessoas fazem as coisas numa sequência rápida, em vez de estarem literalmente a fazer várias coisas ao mesmo tempo. É mais fácil queixarmo-nos de que temos a caixa de correio cheia do que falar dos outros problemas de trabalho. Sou céptica em relação à justificação das interrupções causadas pela tecnologia.

No livro diz que é possível comprar tempo. A que ponto há uma desigualdade de tempo provocada por uma desigualdade de riqueza?
Há uma grande desigualdade. E, mais uma vez, não poria a tecnologia no centro disso…

Sim, é possível comprar serviços, comprar o trabalho de outros…
Em termos de poupar tempo, o que as pessoas ricas fazem é comprar muito trabalho dos outros. Uma das coisas de que vale a pena falar é de como o futuro com que Silicon Valley sonha para todos nós é um mundo com muitos assistentes pessoais nos telemóveis, como se todos vivêssemos em classes altas com escravos, mas com os escravos a serem máquinas. É uma fantasia antiga. Mas a maioria dos robôs estão em fábricas de carros, estão a pintar a spray, o que está a ser automatizado não são os serviços prestados por humanos. A promessa antiga da inteligência artificial e da robótica é que haverá mais inteligência e não teremos de fazer várias coisas, como cuidar dos mais velhos. Mas a inteligência artificial não está sequer perto disso. Que tipo de fantasia é esta de querer ter escravos automáticos? Não é um desejo que eu tenha…

Estamos hoje a trabalhar mais horas, apesar de haver muitas tarefas automatizadas. Mas houve coisas, como a máquina de lavar, que nos trouxeram mais tempo. Temos mais tempo de lazer do que há 100 anos. O que precisamos é de um equilíbrio?
Com tecnologias como a máquina de lavar, o que acontece é que os padrões se alteram quando elas aparecem. Hoje lavamos mais vezes a roupa. Temos mais tempo, mas não sentimos que o temos. Acho que esse é o paradoxo. Em parte, tem a ver com uma cultura que valoriza o estar atarefado e a hiperprodutividade. Os heróis de hoje são o Steve Jobs, o Ted Turner [magnata dos media americano], os heróis empreendedores... Li o perfil do Jony Ive [vice-presidente da Apple] na New Yorker. Falam sempre de ser obsessivos, maníacos, de trabalhar 24 horas por dia…

Há 100 ou 200 anos, ter tempo para lazer era ter estatuto. Esse estatuto foi substituído por estar atarefado?
Penso cada vez mais nisso, e julgo que sim. Um colega disse-me: “Imagina que eu digo que não tenho assim tanto email e que não tenho assim tanto para fazer. Toda a gente dirá que sou um falhado.” É uma americanização do estilo de vida. Está a criar-se uma cultura em que isso é valorizado e em que o tempo de lazer é desvalorizado.

Consegue determinar o ponto em que começámos a desvalorizar o lazer e talvez a sobrevalorizar o trabalho?
Um colega escreveu um trabalho sobre a antiga aristocracia, que se orgulhava de ter uma vida de lazer, dedicando-se à música, à caça… Tem a ver com o capitalismo industrial. As pessoas interiorizaram que o trabalho é uma coisa boa em si. O Ive, o tipo da Apple, disse que mesmo quando era novo, estava sempre a trabalhar! Os desempregados hoje são vistos apenas como indolentes, preguiçosos.

Na sua opinião, o trabalho é uma coisa boa em si mesma?
Tenho de dizer que estou a repensar isso. Como uma marxista, sempre alinhei com a ideia de que não havia nada mais criativo e mais definidor de identidade. Talvez nos estejamos a focar demasiado no trabalho e haja mais coisas para fazer com o nosso tempo. Saber se podemos trabalhar menos, consumir menos e ter uma vida diferente é uma discussão que ainda não estamos a ter. A chave para isso é a redistribuição do trabalho, de forma a não haver uma sociedade em que há profissionais a trabalharem imensas horas, e muitas pessoas desempregadas e sem trabalho que chegue.

Escreveu que pode ser que muitos de nós tenhamos mais tempo, mas não o tipo certo de tempo. O que quer dizer com isto?
Estou a referir-me a tempo com outras pessoas. Há um estudo interessante que diz que tanto desempregados como empregados se sentem melhor quando o fim-de-semana está a chegar, e que se sentem pior na segunda-feira de manhã. Isto acontece porque o tempo de socialização é aos fins-de-semana. Mesmo os desempregados sentem isto, porque o fim-de-semana é a altura em que têm tempo livre ao mesmo tempo que os outros. É uma questão de ter tempo social, não apenas tempo em abstracto.

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Judy Wajcman, autora de um livro que analisa a relação com as tecnologias e a forma como sentimos o tempo DR
"Quando se olha para os telemóveis, para smartphones, por exemplo, as pessoas querem estar em estrito contacto com a família e com os seus amigos. Quando os telemóveis surgiram, pensei que era mais uma ferramenta de trabalho”, diz Judy Wajcman Dado Ruvic/Reuters