Retrato dum gato

O Chicho é um gato filtrador. Estes gatos, para facilitar as vidas complicadas que levam, aplicam filtros a todas as escolhas quotidianas.

Ao gato bonitão, com olhos e cores de lobo, deu-se o nome de Chícharo. Mas ele, rejeitado pela mãe à nascença, rejeitou o nome. Cantavam “Chícharo! Chícharo”, mas ele não respondia, era como se não fosse com ele.

Por fim aceitou Chicho. Afinal tratava-se de uma variante admissível do clássico Chico. Escolher o nome foi o primeiro grande gesto do gato.

O Chicho é um gato filtrador. Estes gatos, para facilitar as vidas complicadas que levam, aplicam filtros a todas as escolhas quotidianas.

No que toca à comida, por exemplo, uma das tratadoras do Chicho explica: “Gosta de tudo, desde que seja nosso.”

Se reparar que algum dos tratadores ou convidados vai comer qualquer coisa — uma carcaça com chouriço, um iogurte de mirtilos, um arroz de grão com peixinhos da horta, um naco de Rabaçal —, ele põe-se em bicos de pé para implorar uma percentagem daquela merenda.

Já à comida dita “de gato”, que lhe põem assiduamente na malguinha, torce com desprezo o nariz. Nem se dá ao trabalho de cismar: “O que é isto?” Vira o rabo e basta-lhe concluir: “Não é para mim.”

Nele manda o filtro: “Se é suficiente bom para os seres humanos com quem convivo — e se eu vir, com estes olhos, que o apetite deles é genuíno e que não estão só a fingir para ver se eu como aquilo que eles me querem dar —, então é suficientemente bom para mim.”

Também não gosta de restos, o Chicho. Gosta da comida acabada de confeccionar, quando o pão ainda está estaladiço e a alface assobia de tanto viço. Chamem-lhe parvo. 

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