Que o condicionamento do gramaticalmente indecifrável não o afaste daqui

A minha filha tem três anos e já consegue identificar a letra R. Como é óbvio, estou apavorado. E se ela começa a reconhecer outras letras? E se, Deus proíba!, aprende a ler?

Às vezes vamos na rua e ela grita: “Pai! Um rê! Olha um rê! Qual é a outra letra ao lado?” E eu: “Não sei.” Ela: “Sabes, sabes! Diz, pai!” E eu: “Não queres antes um gelado?” E ela lá acaba com a parvoíce de querer saber coisas.

O meu medo é que ela um dia venha a conseguir ler declarações do presidente do Tribunal Constitucional (TC) e passe a fundamentar as suas exigências disparatadas com argumentação aparentemente lógica apoiada em vocabulário sofisticado. Por exemplo, imaginemos isto:

— Pai, quero aquele carro.

— Tu não podes guiar.

— Mas eu quero!

— Não pode ser.

— Mas eu quero!

— Mas eu não quero.

— Porquê?

— Já temos carros lá em casa.

— Mas eu quero.

— Não tenho dinheiro.

— A mãe tem.

— A mãe também não tem dinheiro.

— A máquina tem.

— A máquina está estragada.

— Porquê?

— Alguém estragou.

— Foi o vizinho?

— Não, não foi o vizinho. Não sei quem foi.

— Mas eu quero!

— O pai compra-te o carro um dia destes.

— Amanhã?

— Olha ali a letra rê!

— Ah! A letra rê!

Com algum custo, consigo safar-me. (Gabo-me de só muito raramente perder discussões com uma criança de três anos.) Já não me safo é se a minha filha aprender a ler e se deparar com o que disse Joaquim Sousa Ribeiro, presidente do TC, numa conferência esta semana: “O que assistimos a partir da década de 80 foi a progressiva introdução de medidas redutoras do nível já alcançado, por exemplo, no Serviço Nacional de Saúde ou no direito ao trabalho por condicionamentos do financeiramente possível (…)”

Já não tenho arcaboiço intelectual para isto:

— Pai, quero aquele carro!

— Não pode ser, não há dinheiro.

— Pai, estás a ser condicionado pelo financeiramente possível.

— Hã?

— Impedir-me de ter um carro é uma medida redutora do nível alcançado.

— Mas o carro é caro. Não há dinheiro… Olha ali a letra rê!

— Estou a ver. Está entre a letra “i” e a letra “a”, em “financeiramente possível”.

Assim é difícil rebater. Uma coisa seria o presidente do TC dizer: “Houve cortes porque não há dinheiro.” Percebia-se que a realidade torna os cortes inevitáveis. Mas, ao referir um “condicionamento do financeiramente possível”, parece má vontade de quem se deixa condicionar pela realidade. Corta-se não porque não haja, mas porque um desmancha-prazeres aceita a realidade e não finge que há.

Em vez de: “Não há dinheiro, não há palhaços”, está-se a dizer: “Não há dinheiro, mas estes palhaços não são porreiros porque exigem receber!”

P.S. — Atenção, isto é ficção. Não é a minha opinião. Concordo com as palavras do presidente do TC. Aliás, eu próprio uso este tipo de argumentação. Ainda há pedaço: a editora da Revista 2 telefonou-me a avisar que se eu não enviasse o texto antes do fecho, o texto não saía. Eu disse-lhe: “Estás a deixar-te influenciar pela interferência do fisicamente exequível!” A verdade é que o leitor está a ler o texto hoje e eu só o mandei amanhã.     

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