Presidente critica Justiça e alerta para falta de credibilidade no Estado de direito

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Cavaco apelou a que se legisle com mais rigor Daniel Rocha

Criticou a produção tendenciosa das leis, classificou de intoleráveis os atrasos na cobrança de dívidas e o número de processos pendentes nos tribunais tributários. Apelou ao respeito pelo segredo de justiça e questionou os resultados das leis penais. Foi assim, crítico e directo, o discurso do Presidente da República, Cavaco Silva, ontem, na cerimónia de abertura do ano judicial.

"Um país que tem, nos seus tribunais, cerca de um milhão de execuções pendentes é um país que enfrenta um sério problema de credibilidade como Estado de Direito", disse o Presidente perante as dezenas de magistrados e de advogados presentes no Supremo Tribunal de Justiça, em Lisboa. "De nada vale proclamarmos na Constituição que Portugal se rege pelo primado da lei, quando essa lei não chega em tempo útil à vida dos cidadãos". Palavras ouvidas com atenção pelos outros oradores nesta cerimónia: o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha Nascimento, o presidente da Assembleia da República, Jaime Gama, o procurador-geral da República, Pinto Monteiro, o ministro da Justiça, Alberto Martins e o bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho Pinto. E pelo primeiro-ministro, José Sócrates, que não falou mas marcou presença.

Repetindo o que já defendera no ano passado na mesma cerimónia de inauguração de um novo ano nos tribunais, Cavaco Silva salientou a necessidade de "legislar com mais rigor". Disse que muitas das leis elaboradas, além de não terem "adequação à realidade portuguesa", são muitas vezes ditadas por "puros motivos de índole política ou ideológica, mas não vão ao encontro das necessidades reais do país, nem permitem que os portugueses se revejam no ordenamento jurídico nacional." A esse propósito, Cavaco Silva deu o exemplo da Lei do Divórcio, notando que, apesar de ter sido aprovada para diminuir a litigiosidade, após ter entrado em vigor "os litígios nos tribunais de Família e Menores terão aumentado substancialmente."

Na sua intervenção, o Presidente defendeu também a necessidade de "realizar uma séria avaliação" das leis penais adoptadas, bem como dos resultados que produziram. "Medidas acolhidas quanto à detenção fora do flagrante delito, quanto à prisão preventiva ou quanto ao prazo de conclusão de inquéritos de maior complexidade, apenas para dar alguns exemplos, conduziram a resultados que têm implicações muito sérias para a segurança dos cidadãos e para a prevenção, a investigação e o combate à criminalidade, em especial a criminalidade organizada e altamente violenta."

A violação do segredo de justiça foi outra questão relativamente à qual Cavaco Silva manifestou a sua preocupação, notando que não se trata apenas de "um problema jurídico, mas também de uma questão de cultura cívica e de responsabilidade" e salientando que "a investigação criminal não deve ser perturbada por fugas de informação ou interferências externas". Para o evitar, "as entidades de controlo e disciplina têm, neste domínio, que exercer uma acção mais atenta e vigilante, uma fiscalização mais rigorosa, a que se deve seguir a aplicação das devidas sanções sempre que se verifique que a lei não foi respeitada", defendeu o Presidente.

Examinar arma de fogo

A necessidade de melhorar a investigação criminal foi também referida pelo procurador-geral da República, Pinto Monteiro, no que respeita particularmente ao Ministério Público, ao qual cabe a tutela da acção penal. Pinto Monteiro frisou a necessidade de um novo estatuto e de uma nova lei orgânica que garantam a autonomia do Ministério Público "em benefício do cidadão". Destacou também na sua intervenção que é preciso "eliminar uma visão de um corporativismo fora de época, que se vem afirmando cada vez mais e que só pretende beneficiar alguns em detrimento de outros". E apontou alguns dos problemas concretos que se colocam à investigação criminal: um exame a uma arma de fogo "demorará um mínimo de 300 dias". Se for necessário um exame contabilístico, "quase sempre indispensável nos chamados crimes de "colarinho branco", desespera-se enquanto o mesmo se arrasta no tempo". Um exame grafológico "perde-se no tempo". Um "simples exame a uma "cassete-pirata" ou a DVD e CD não tem resposta pronta". Para solucionar estes problemas, defende, é "imperioso que sejam facultadas às entidades competentes para os exames, para as perícias, para as reconstituições, meios técnicos e humanos que lhes permitam uma resposta pronta ou então que se encontre forma legal de prescindir do seu concurso". Assim, afirma Pinto Monteiro, "é que não é possível arcar com responsabilidades que não cabem ao Ministério Público".

Os problemas da investigação criminal foram também abordados pelo bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho Pinto. Manifestando a sua preocupação quanto às "cirúrgicas violações do segredo de justiça" conduzidas "no sentido de incriminar os suspeitos e de conduzir à formulação pública de juízos de culpabilidade sobre pessoas a quem a lei, ingenuamente, manda tratar como inocentes", Marinho Pinto salienta a "promiscuidade entre certos sectores da investigação criminal e certos órgãos de comunicação social." Segundo o bastonário, "grande parte da investigação criminal faz-se para a comunicação social, com o intuito óbvio de criar artificialmente o alarme social necessário à aplicação de medidas de coacção mais severas e de condenações mais duras".

Marinho Pinto criticou ainda as buscas aos escritórios de advogados, considerando que "não é juridicamente admissível (nem moralmente sério) constituir um advogado arguido unicamente para legitimar processualmente a busca que se deseja." Se um advogado auxilia um cliente a cometer um crime, "deve responder como qualquer criminoso, sem nenhum privilégio", considera o bastonário, mas se ele se limita a ajudar o seu cliente a defender-se em tribunal, "está a cumprir a sua obrigação profissional e, mais do que isso, está a desempenhar uma função importantíssima para o Estado de direito". As imunidades profissionais dos advogados "foram criadas como garantias dos cidadãos" e, por isso, são tão importantes, nota. "Não compreender isto é não compreender os pressupostos básicos do funcionamento da justiça no mundo civilizado".

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