O clube das más mães

Perante a claustrofobia geral, há um blogue, espécie de comunidade emocional de mães 3.0, onde estas rompem o estereótipo da mãe perfeita e reivindicam o seu direito ao espaço público.

Desafiado a identificar uma imagem que simbolizasse o século XX, uma espécie de símbolo do common people do século, o historiador britânico Eric J. Hobsbawm concluiu que a figura mais capaz de transcender as diferenças e desigualdades era a de uma mãe com os seus filhos. “As pessoas que têm mais elementos em comum, onde quer que vivam, mesmo através de culturas, civilizações e línguas diferentes, são as mães. De alguma maneira, a experiência de uma mãe corresponde ao que aconteceu à maior parte da espécie humana no século XX”, justificou, em entrevista ao jornalista italiano Antonio Polito e publicada sob o título O Século XXI – Reflexões sobre o Futuro (Editorial Presença). 

A conversa entre os dois decorreu em 1999. Numa altura, portanto, em que se sentia já a depressão dos nascimentos da Europa que o historiador atribuía aos níveis de educação, por um lado, e aos cálculos económicos, por outro. A estes factores – que hoje soam evidentíssimos mas que na altura se começavam apenas a definir – Hobsbawm somava um terceiro: “Ainda mais importante é hoje a consciência das mulheres de poderem escolher estilos de vida alternativos, porque já não existe só o modelo da mãe. É um grande passo em frente, obviamente, mas também um passo para o desconhecido”.

Quase vinte anos volvidos, o terreno deixou de ser tão desconhecido. Mas nem por isso se tornou menos agreste. Às mulheres que puderam escolher ser mães continua a ser negado espaço público para extravasarem o cansaço de séculos que as acomete, nomeadamente quando têm de conciliar a escrutinadíssima maternidade com as expectativas profissionais – delas e dos outros. E assim poucas se atrevem a extravasar a fúria perante a enésima birra do dia ou a vontade de refúgio num quarto de hotel durante um par de noites, sabendo que não o farão dada a impossibilidade de ficarem bem sem os filhos, numa loucura de “nem contigo nem sem ti”. Às que têm sorte, o mais brando que lhes pode acontecer é serem encaminhadas para um workshop de coaching parental ou mindfulness. Ou então serem alvejadas pela pergunta da praxe:

– Mas tu não quiseste ser mãe?

Quiseram. E continuam a querer. Mas recusam que essa primeira escolha as obrigue a renunciar a todas as outras.

E, no meio de tal claustrofobia, soa como passeio à beira-mar a navegação por um blogue espanhol chamado Club de Malasmadres. Nele, as mulheres podem vociferar, resmungar, zangar-se com a impossibilidade de conciliar a maternidade e carreiras profissionais sem falhar numa das frentes. São, na definição das próprias, uma comunidade emocional 3.0 de mães com poucas horas de sono, pouco tempo, alérgicas a pieguices e com ganas de romper o mito da mãe perfeita. São mães que, na demanda por um novo modelo, lutam por não perder a sua identidade como mulheres, e como mulheres trabalhadoras, e sem renunciar à possibilidade de ajudar os filhos a crescer.

Claro que estes dilemas aparentemente inconciliáveis traduzem um enorme salto civilizacional face ao modelo salazarento do homem provedor que ganha a vida fora de casa e da mulher que a carrega nos braços que pontificou até há poucas décadas. E é inegável que, do mesmo modo que as mulheres romperam as fronteiras da domesticidade, cada vez mais homens se assumem na sua “masculinidade cuidadora” dos filhos pequenos, conforme dizia esta semana a investigadora Karin Wall, que, a propósito do Livro Branco – Homens e Igualdade de Género em Portugal, apontava a necessidade de eliminar os bloqueios ao exercício da paternidade sentidos pelos homens. Mas, e como não estou no malasmadres, vou dizer isto com jeitinho: Quantos homens estão efectivamente disponíveis para faltar ao trabalho quando o filho fica doente, nomeadamente naquele dia em que tinham um compromisso importantíssimo? Quantos, entre os que gozam as licenças parentais, ficam efectivamente em casa e deixam de trabalhar? Quantos assumem as idas ao médico, a gestão dos horários das refeições, as burocracias inerentes às matrículas e as conversas com professores, fora de uma lógica de remedeio intermitente? Quantos se angustiam e tratam de recusar reuniões ou tarefas depois das 18h00 para poderem estar com eles? E estão dispostos a pagar o preço por isso?

Enquanto assim for, e enquanto, apesar de tudo o que muda à volta, o que se espera de mulher que decide ser mãe permanecer imutável, tenho dificuldades em compadecer-me dos homens que se queixam dos bloqueios existentes ao exercício da sua paternidade. E acredito que, se fosse desafiado a escolher a imagem mais capaz de transcender as diferenças e as desigualdades entre o common people da Europa do Sul neste começo do século XXI, aposto que Hobsbawm continuaria a optar pela imagem de uma mãe – e não de um pai – com os seus filhos. Eventualmente à beira de um ataque de nervos.

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