Nem surf, nem peixe. Peniche não seria o mesmo com a central nuclear

Ferrel recordou o dia em que o sino tocou a rebate e o povo saiu à rua contra a primeira central nuclear portuguesa que nunca chegaria a sê-lo. Foi há 40 anos. Peniche “não teria a mesma essência nem projecção se os surfistas coexistissem com uma central nuclear”, ouviu-se na cerimónia.

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O presidente da câmara de Peniche, António José Correia, falou com um repolho e uma lata de sardinhas nas mãos. “São os elementos diferenciadores de Peniche." Nuno Ferreira Santos
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A manifestação de Ferrel de há 40 anos foi recordada com o descerrar de uma lápide Nuno Ferreira Santos
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Sem câmaras de televisão, nem directos nos telejornais, sem o apoio de partidos políticos, sem movimentos ecologistas, mas com muita raiva porque sentia que estava a ser enganado. Foi assim que no dia 15 de Março de 1976 o povo de Ferrel se dirigiu ao local onde a Companhia Portuguesa de Electricidade (que daria origem à EDP) pretendia construir a primeira central nuclear portuguesa. Foram mais de 700 pessoas, penduradas nos reboques dos tractores, em camionetas, de motorizada e até de burro. Levavam enxadas, forquilhas, foices, ancinhos. Mas não houve confrontos porque nem a GNR sabia desta manifestação espontânea.

No local, havia um pequeno estaleiro com uma antena meteorológica. Era o princípio das obras de prospecção para a central nuclear. Não ficou nada de pé.

O slogan “Nuclear? Não Obrigado” teve início há 40 anos. E 40 depois, a manifestação de Ferrel foi recordada neste domingo, na vila de Ferrel, com o descerrar de uma lápide e a inauguração de uma exposição denominada “Marcha do Povo de Ferrel Contra a Central Nuclear”.

Na sessão comemorativa, que juntou cerca de 200 pessoas, os discursos sublinharam a importância deste primeiro combate contra o nuclear que haveria de ter repercussões em Portugal e no mundo. Na altura ainda não tinha acontecido Three Mile Island (1979), nem Chernobyl, (1986) nem Fukushima (2011) e o governo de Pinheiro de Azevedo anunciava as virtudes deste tipo de energia e sublinhava a sua elevada segurança e a fonte de progresso que uma central nuclear representava para a região onde fosse instalada.

António José Correia era então um jovem estudante de Economia no Instituto Superior de Economia e editava, com um grupo de amigos penichenses, a publicação local O Arado. “A nossa primeira preocupação foi obter informação. Fomos ter com o professor Delgado Domingos, com o Afonso Cautela para tentar perceber o que era isto. E partilhávamos a informação no Arado. Hoje fala-se em empreendedorismo, mas nós já na altura éramos muito empreendedores: tínhamos uma motorizada, uma máquina fotográfica e imprimíamos o jornal no Instituto Superior Técnico”, conta o hoje presidente da câmara de Peniche, eleito pela CDU.

Crealmina tocou o sino
Num país saído de uma revolução, as comissões de moradores tinham então poderes que só mais tarde seriam assumidos pelas juntas de freguesia. António José Correia conta que foi através destas organizações das aldeias em redor de Peniche que foi criado o movimento que iria dar origem à manifestação.

Às oito da manhã do dia 15 de Março uma mulher do povo, de nome Crealmina (já falecida) tocou o sino a rebate. E fê-lo com tanta gana que o badalo se partiu. Mas a mulher, ainda assim, agarrou na peça e continuou a martelar no sino para chamar a população. Neste domingo, foi anunciado que Crealmina vai ter o seu nome numa rua de Ferrel.

João Honório Correia, 71 anos, tinha na altura 31. “Eu vim da Atouguia da Baleia. Vim de motorizada. Ouvi o sino tocar, o povo todo reuniu-se e lá fomos, com enxadas e forquilhas. Foi muito engraçado”, contou ao PÚBLICO.

Silvino João, presidente da Junta de Freguesia de Ferrel (eleito pelo PS), foi um dos jovens dinamizadores da manifestação. Na sua alocução recordou Fausto e a sua canção “Se tu fores ver o mar — Rosalinda” (“E em Ferrel lá p’ra Peniche/vão fazer uma central /que para alguns é nuclear/mas para muitos é mortal”). E contou que, sim senhor, é verdade que uma das palavras de ordem era “Vamos é partir esta merda já”. E partiram. “E não se roubou. As pessoas levaram para casa o ferro que lhes fazia falta”, conta.

Esta manifestação viria chamar a atenção do país e do incipiente movimento ecologista português para os perigos de uma central nuclear numa zona como Peniche, ainda por cima assente numa falha sísmica.

A Gazeta das Caldas lançou o suplemento Pela Vida e organizou em 1978 o Festival Pela Vida Contra o Nuclear, que colocaria Ferrel nos noticiários nacionais e em algumas pequenas notas de revistas internacionais. Vieram activistas do estrangeiro e figuras como Gonçalo Ribeiro Telles, José Carlos Costa Marques, Cláudio Torres, Rui Vieira Nery, Nuno Ribeiro da Silva, dariam o seu apoio. Nessa segunda manifestação, o local da central nuclear já estava em obras. E desta vez havia um pelotão da GNR que protegeu a estação meteorológica, mas não impediu que o povo desmantelasse o estaleiro para as obras que, dizia-se, eram apenas de prospecção, mas que se receava fossem já definitivas.

José Luís de Almeida e Silva, director da Gazeta das Caldas recordou que era a Alemanha — que até tinha ajudado Portugal no período difícil saído da revolução — que queria fornecer o reactor nuclear ao país. E António Eloy, ambientalista, não esquece que o próprio PCP era à época defensor da energia nuclear, desde que as centrais fossem soviéticas.

Apelo ao fecho de Almaraz
António Eloy aproveitou a cerimónia deste domingo de manhã para apelar a uma exigência ao governo português: “Que exija ao governo espanhol que encerre a central de Almaraz a escassos 100 quilómetros da fronteira portuguesa.” E explica porquê: “É velha, tem a mesma idade da de Ferrel se esta tivesse sido construída, está mais do que amortizada e teve problemas nos últimos 31 anos. Está na altura de a fecharem em vez de quererem prolongar o seu ciclo de vida”.

Na peregrinação deste domingo ao local onde não chegaria a ser construída a central, António José Correia era um homem feliz. Num dia que já parece de Primavera, céu e mar a perderem-se de azul, os contornos da Berlenga, do Baleal e do cabo Carvoeiro bem desenhados no horizonte, o autarca de Peniche disse que a sua terra não seria a mesma se o nuclear tivesse ganho. Uma hora antes, na sua intervenção, dirigira-se ao palanque com um enorme repolho nas mãos e umas latas de sardinha. “São os elementos diferenciadores de Peniche: produtos hortícolas de qualidade, o melhor peixe do mundo e o cluster do surf, que não teria a mesma essência nem projecção mundial se os surfistas coexistissem com uma central nuclear.”

E mais: por ironia do destino, naquele mesmo local, está hoje submergido um equipamento que aproveita a energia das correntes marítimas para produzir electricidade.

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