Carta aberta ao meu Presidente por ocasião do 43.º aniversário da Universidade do Minho

A universidade sobrevive à custa de uma batalhão de precários e precárias. Ao contrário de afortunados como o Senhor Presidente e eu próprio, que mesmo para obtermos os nossos graus nunca perdemos o vínculo institucional, a universidade está hoje povoada de precários.

Exmo  Senhor Presidente:

Escrevo-lho esta carta no dia em que, honrados com a sua presença, estaremos a comemorar o 43.º aniversário da Universidade do Minho. Trata-se de um dia de festa e, por certo, de evocações auto-laudatórias, emoções positivas e testemunhos entusiásticos. O nosso claustro académico abandonará por momentos as tonalidades de um cinzento medieval para refletir, qual arco-íris, toda a banda de cores do espectro visível. Também lá estarei para o receber e para usufruir destes raros momentos de contágio emocional. Conhecendo o seu  prolixo “otimismo”, ainda que “não irritante”, estou certo que aproveitará a ocasião para, relembrando a sua condição de académico,  testemunhar as glórias ascensionais vividas pela academia portuguesa nas última décadas. Socorrer-se –á, por ventura, de exemplos retirados do discurso do nosso Reitor, que estará nesse dia a prestar contas de oito anos à frente dos destinos das nossa universidade.  Não faltarão exemplos genuínos de como a  Universidade do Minho afirmou a sua competência no ensino, na investigação e na interação com a sociedade.

E tudo aquilo que vai ser dito será, efetivamente, verdade. Todos esses exemplos serão exemplares distintos dessas cores do espectro visível da nossa universidade, porque, em dia de festa, convém articular cuidadosamente a semântica da palavra com a sensorialidade furta-cor que dominará o cortejo académico.

Haverá efetivamente motivos de celebração. É de facto verdade que a Universidade portuguesa evoluiu muito nas últimas décadas.  A posse do primeiro reitor da Universidade do Minho a 17 de Fevereiro de 1974, antecedia em pouco mais de dois meses o advento da liberdade; a reforma universitária que decorria desde 1973 era já premonitória do fim das trevas que se avizinhavam. As universidades “novas” cresceram passo a passo com esta nova era mas, simultaneamente, constituíram-se elas próprias como instrumento para a construção de uma sociedade mais humanizada, mais justa, mais livre e mais sábia.

Aqueles de nós que tivemos a fortuna de acompanhar toda esta transformação, como é o seu e o meu caso, seremos talvez credores de alguns dos sucessos que hoje serão cantados na musica celestis que ecoará nas paredes do nosso salão medieval . Mas, nunca o olvidemos, somos sobretudos devedores. Devedores, antes de mais, por nos ter sido possível despertar para a adultez vinculados profissionalmente à academia sem a angústia dos hiatos que hoje são a regra nos percursos de transição curso - profissão  (43 anos atrás o ministro - Veiga Simão - e o reitor a que era dada posse– Lloyd Braga – tinham pouco mais de 40 anos!) Mas também devedores do investimento que o país fez em  todos nós, oferecendo-nos um vínculo institucional  ao mesmo tempo que financiava os nossos doutoramentos. Finalmente, e não de somenos importância, devedores do ambiente de liberdade académica que nos permitiu ser, simultaneamente, atores e autores no processo de construção da própria universidade.

Senhor Presidente, fomos efetivamente uma geração afortunada e por, isso, não fosse hoje um dia festivo e de louvor aos nossos créditos, gostaria de lhe dar aqui o meu testemunho de algumas dessas cores que estarão, hoje nas cerimónias,  fora do espectro visível.

Não fosse hoje um dia de festa e gostaria de lhe confidenciar as minhas inquietações, assim em jeito de sussurro de cidadão para o seu Presidente, de que esta universidade que todos construímos, e que agora tanto glorificamos na contabilidade sempre tão impactante de publicações, projetos, patentes e descobertas, tem sérios riscos de sustentabilidade. Para além desse espectro visível das cores das nossas vestes festivas, existem algumas bandas escondidas que valeria a pena não silenciar, não se desse o caso de ser hoje um dia de festa.

Por exemplo, gostaria de dizer-lhe o que estou certo é para si óbvio, de que a universidade portuguesa está a envelhecer. O progresso natural deste envelhecimento é a senescência e, no limite, a morte. Gostava de lhe dizer isto, serenamente, e não ao jeito de Cassandra, para que a nossa voz chegue efetivamente a Apolo. Ao fechar-se à renovação geracional, a universidade fez com que os que eram os mais novos há 20 anos são ainda os mais novos 20 anos passados; assim uma espécie de elixir da eterna juventude por decreto institucional. Eternizaram-se assim, complementarmente, as novas gerações com o estatuto vitalício de estudantes. Aqueles e aquelas de que a universidade precisa para se rejuvenescer e que são já hoje, efetivamente, a sua força viva, transitam entre os diferentes graus da “carreira discente” – de licenciatura ao mestrado; do mestrado ao doutoramento; do doutoramento ao pós-doc 1; do pós-doc 1  ao pós-doc 2 etc. . Era capaz de adivinhar que alguns dos exemplos de sucesso dos quais hoje iremos ouvir falar serão obra destes e destas colegas que votámos à condição de sempiterno estudante ainda que sob interessantes designações eufemísticas.

Claro que seria falta de cortesia falar-lhe destas coisas num dia em que nos encontramos para comemorar mais um aniversário da nossa universidade. Como também não lhe comentaria, que neste processo de envelhecimento, a universidade sobrevive à custa de uma batalhão de precários e precárias. Ao contrário de afortunados com o Senhor Presidente e eu próprio, que mesmo para obtermos os nossos graus nunca perdemos o vínculo institucional, a universidade está hoje povoada de precários. Hoje em dia, grande parte da vida da academia só é possível graças ao  recurso a docentes convidados ou bolseiros. Meses atrás a comunicação social alertava  que os docentes a tempo parcial eram já mais de 1/3 e de que proliferavam casos de docência não paga.  A proliferação de “adjuncts”, que tem vindo a minar os alicerces de muitas universidades por esse mundo fora, começava a fazer caminho em Portugal. Rapidamente se fez um silêncio não fossem as notícias interferirem com o hedonismo reinante.  Paradoxalmente, são estes precários o espectro visível a que hoje recorremos, não só para assegurar a sobrevivência dos nossos projetos investigação, ensino e interface, mas também para ilustrarmos o nosso sucesso e ascendermos ao Olimpo dos rankings académicos. Em troca, para estes nossos colegas uma mão cheia de coisa nenhuma. Estas pessoas têm cara e rosto. São por exemplo, as quatro brilhantes investigadoras a quem o Senhor Presidente entregou há dias o Prémio L´Óreal da Ciência. Mas são muitas e muitos mais que dão uma aparência de vida a uma universidade que, sem eles e elas, sucumbe paulatinamente.

Se hoje não fosse um dia de festa seria talvez ocasião de os dois, desta vez de académico para académico, partilharmos com saudosa cumplicidade os tempos de liberdade académica. De como, num espírito de democracia participada e governança compartilhada, foi sendo construída a nova universidade portuguesa.  De como a empresarialização das universidades vai desapossando os membros da academia de qualquer autoria sobre os destinos da universidade. De como as células básicas da academia vão sendo despojadas de qualquer poder deliberativo. De como, lenta mas consistentemente, o poder das universidades se vai centrando na figura de um Reitor em articulação com estruturas total ou parcialmente externa aos corpos da academia (e.g., Conselhos Gerais  e Conselho de Curadores das Universidades Fundação). A gestão deixou de ser um processo de criatividade compartilhada para se transformar numa entediante reprodução de rotinas e burocracias. Nada melhor para afastar a mente inquieta dos académicos da gestão e assim assegurar o controlo total dos seus destinos.

Senhor Presidente, não falemos pois destas e de muitas outras coisas tristes porque isso não aquece a alma. A situação é séria mas hoje é dia de festa e ocasião de celebrarmos os nossos créditos. É tempo de reificarmos a excelência, ainda que esta nos seja emprestada por aqueles  e aquelas que a universidade tarda a admitir no seu claustro. 

Bem vindo à nossa Universidade,  Senhor Presidente

Óscar F. Gonçalves, Professor Catedrático

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