A minha filha não é uma princesa (e merece respeito)

Uma menina não pode ter carros, jogar à bola ou brincar com ninjas? Ou sujar-se toda no parque?

Ainda há pouco tempo eram bebés; agora já andam, falam, saltam, correm, gritam. As crianças crescem depressa — depressa de mais. Às vezes, dou por mim a contemplá-los e pensar: “como os preparo para vida?” “Será que estou a educá-los bem?” A dúvida persiste. Há uma coisa, porém, de que tenho a certeza (e deixem-me agora virar a atenção para ela): farei tudo o que puder para a ajudar a perceber que é um ser humano com os mesmos direitos e deveres de todos os outros. Espero que quando ela crescer, ser mulher seja menos desigual do que é hoje em dia. E espero contribuir para isso.

“Aí vem mais uma crónica feminista, a enésima desta semana. Já não há paciência”, pensarão alguns leitores. Dêem-me só mais uns minutos do vosso tempo. Já ouviram falar da Marta? Tinha 42 anos e foi morta pelo ex-marido? E da Francisca? Foi parar ao hospital, depois de o namorado não ter gostado das mensagens que leu no telemóvel dele. E da Sofia? Perdeu 80% da audição e teve um AVC, depois dos maus-tratos do marido e pai da filha. Infelizmente, esta lista (os nomes são fictícios mas os casos são bem reais) podia continuar por muitas e muitas páginas. E, um dia, pode lá estar o nome da vossa filha. Da minha filha. Da vossa sobrinha. Da vossa irmã. Da vossa mãe.

E agora perguntam-me: mas o que é que isso tem a ver com a forma como educamos as nossas crianças? Muito, respondo. É claro que não há uma receita mágica para acabar com a violência doméstica, com a desigualdade salarial entre homens e mulheres, com o assédio sexual, com a misoginia ou com a mutilação genital feminina. Mas, todos os dias, podemos ajudar a reduzir estes problemas. 

É claro que homens e mulheres são diferentes em muitas coisas (não vou pedir à minha filha para fazer chichi de pé), mas na dignidade são iguais. E a luta pela igualdade passa por muitos tabuleiros, alguns que normalmente nem valorizamos. Devemos combater os estereótipos desde pequenos. Sou fã do movimento “Pink Stinks”, que se revoltou contra a forma como os brinquedos e as roupas para meninas tentam tornar a vida delas cor-de-rosa, como se não lhes fosse permitido ousarem algo diferente.

Uma menina não pode ter carros, jogar à bola ou brincar com ninjas? Ou sujar-se toda no parque? Claro que pode. E, aqui entre nós, digo-vos que a minha até tem bastante jeito para o futebol e já trepa melhor pelo escorrega do que alguns rapazes com a idade dela. Ou seja, é tão natural vê-la de vestido (fica linda!) como de fato de treino, qual jogadora de râguebi a levar tudo à frente (fica igualmente linda!).

Nem de propósito está a ser lançado agora em Portugal uma série de livros sobre as antiprincesas. Diz a contracapa dos livros. “As antiprincesas não são do contra só porque sim: não se resignam, e lutam para fazer valer aquilo que pensam. Como não usam tiaras, podem virar tudo de pernas para o ar e arriscar o que bem lhes apetece, por exemplo mudar o mundo”.

Acreditem que esta ideia do ser do contra me está a custar muitos cabelos no presente. Ou porque ela não quer aqueles sapatos, ou porque não volta a dormir às 6h da manhã sem tomar leite, ou porque teima em sair pela porta traseira do prédio em vez de ir pela da frente. Mas gosto de pensar que essa teimosia, essa personalidade, podem ser um seguro de vida num futuro que não é muito cor-de-rosa para as mulheres.

É triste estar a dizer estas coisas em 2017, mas ainda somos muitas vezes (demasiadas vezes) surpreendidos com episódios indecentes. E nem é preciso olhar para os casos mais extremos que nos chegam das notícias quase todas as semanas, expressa em títulos como “Quase 50% das vítimas de femicídio já tinham apresentado queixa por violência doméstica” ou “Por cada hora que passa há três queixas de violência doméstica”. 

Basta ver como, à nossa volta, a sociedade perdoa muitas vezes as falhas aos homens abusadores e transforma a mulher-vítima em culpada. Como desculpabiliza o homem e censura a mulher. Como permite tudo a “ele” e exige tudo a “ela”. Por isso, não me cansarei de dizer ao meu filho que ele tem de respeitar as mulheres e defender os direitos delas. E repetirei à minha filha: “Nunca deixes que te faltem ao respeito. Nunca deixes que se aproveitem de ti. Nunca deixes que alguém tente baixar a tua auto-estima”. A minha filha não é uma princesa, não quer ser uma princesa, não precisa de ser uma princesa. Tal como o meu filho, ela só quer, só precisa, só merece todo o respeito do mundo.

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