Uma garantia à Europa e um limite para Portugal

De certa forma, Marcelo Rebelo de Sousa ocupou o centro do país, seja num sentido ideológico, seja numa perspectiva social e política

O Presidente da República parece ter encontrado o tom certo para a fase inicial do seu mandato. O discurso ontem proferido em Estrasburgo, no Parlamento Europeu, combinou com assinalável mestria a enunciação de convicções próprias, a reiteração de compromissos nacionais e a preocupação com a preservação de um sadio ambiente de cooperação institucional no plano interno.

Marcelo Rebelo de Sousa apresentou-se como um europeísta convicto e confiante no sucesso de um projecto político que, nas suas horas mais brilhantes, enfrentou e derrotou a barbárie e o totalitarismo. Não podia ter sido mais clara a sua inscrição no devir histórico de uma ambição europeia fundada na recusa do fascismo e do comunismo, e orientada para a promoção de uma herança democrático-liberal directamente filiada nos vários iluminismos característicos da modernidade neste velho continente. A oposição que estabeleceu entre uma nova fase histórica, marcadamente democrática e europeia, e uma anterior de carácter autoritário e colonialista, visa lembrar que a integração do país nas instituições europeias proporcionou uma ruptura de natureza muito mais vasta do que aquela que poderia resultar de uma mera alteração da ordem política. Evocando o seu próprio percurso e os seus íntimos deslumbramentos, o Presidente teve o cuidado de deixar claro que não concebe como boa qualquer solução que desvalorize a nossa inclusão no núcleo central do projecto europeu.

Se, até há alguns anos, uma posição desta natureza dificilmente escaparia a um estatuto de banalidade, nas presentes circunstâncias históricas ela reveste-se de grande acuidade − não chegando ao ponto de a classificar como singular, atribuo-lhe um valor prescritivo, quando, noutros tempos, seria percebida apenas como uma referência descritiva. As coisas mudaram muito no espaço político europeu e alteraram-se substancialmente no panorama nacional. A nível europeu temos assistido ao recuo de formações e posições de índole mais centrista e ao avanço de propostas extremistas com diversas formulações doutrinárias. A nível interno, com o apregoado e celebrado fim do arco constitucional, o chamado consenso europeu tornou-se muito mais problemático. O fino analista − que o institucional Presidente não deixou de ser − teve por isso mesmo o cuidado de informar os deputados europeus da natureza pró-europeísta do governo actualmente em funções. Fê-lo com a subtileza devida, evitando uma formulação ostensiva que poderia ter o efeito de, paradoxalmente, penalizar a imagem do governo de António Costa. Usou aliás de tal subtileza que ao falar dos partidos de extrema-esquerda que integram a actual maioria parlamentar quase os incluiu num consenso europeu que eles manifestamente rejeitam.

Ao agir desta forma, Marcelo Rebelo de Sousa fornece uma garantia à Europa e estabelece um limite em Portugal. Por muito novo que seja este tempo, e por muito extasiados que andem os sapadores dos novos caminhos da história nacional, a opção primordial pela Europa não pode ser posta em causa. Ou melhor: poder, até pode, como é próprio de uma sociedade livre e plural, mas a sê-lo contará com a oposição declarada do Presidente da República. De certa forma, Marcelo Rebelo de Sousa ocupou o centro do país, seja num sentido ideológico, seja numa perspectiva social e política. É por isso que teve ontem o cuidado de elogiar aspectos nucleares da governação anterior e saudar uma das principais opções do executivo de António Costa: a valorização do incremento do mercado interno como factor propiciador de crescimento económico. Além disso, enfatizou ainda a necessidade de se proceder à correcção de desequilíbrios e injustiças gerados no período de ajustamento financeiro. O país precisava deste tipo de voz alheia a qualquer rancor, despojada de proclamações sectárias, adversa a confrontações perigosas. Uma voz serena mas ao mesmo tempo clara e exigente.

Não está escrito nas estrelas que a presente coabitação institucional esteja destinada a correr bem. Não está, nem poderia estar, atentando à heterogénea composição da maioria parlamentar e ao perfil doutrinário que o Presidente da República insiste em não esconder. O que me parece é existirem condições favoráveis a um bom entendimento entre este e o Primeiro-Ministro, já que o último sempre deixou claro que tinha no modelo europeu da economia social de mercado a referência última de toda a sua acção pública. No fundo, por interposta Europa, o que os aproxima é o consenso social-democrata. Perspectivar até onde esse entendimento poderá ir, que tensões poderá originar à direita e à esquerda, que mudanças poderá até provocar na paisagem política portuguesa, é um exercício que manifestamente excede os objectivos deste artigo. Uma coisa é certa: o discurso ontem proferido em Estrasburgo deixou bem claras as novas oportunidades e os novos limites da vida política portuguesa. Nesse sentido, merece inequívoco aplauso. Para além disso, foi um discurso bom na forma e substancial no conteúdo, tendo merecido aliás o aplauso de quase todas as famílias políticas europeias.

2. Quando as pessoas pensam, agem e debatem de boa-fé, esclarecem-se divergências e superam-se equívocos. Na semana passada associei uma tomada de posição de Daniel Oliveira a reiteradas declarações da líder da extrema-direita francesa. Tive o cuidado, que de resto seria sempre impreterível, de não confundir as suas representações do mundo e as suas propostas de ordem política geral. Daniel Oliveira respondeu – usando de um modo urbano que vai rareando no nosso espaço público − esclarecendo-me em relação a um equívoco em que eu tinha incorrido e reiterando uma divergência em que persistimos.

O equívoco era o seguinte: eu estava convencido que Daniel Oliveira tinha uma visão absolutamente negativa do capitalismo e lhe atribuía a responsabilidade por quase todos os males e insuficiências detectáveis no mundo globalizado. O próprio veio afirmar que não − a sua crítica dirige-se especificamente ao capitalismo financeiro globalizado. O equívoco está, pela minha parte, desfeito.

 A divergência, essa mantém-se. Contrariamente ao que preconiza Daniel Oliveira − uma espécie de regresso a uma social-democracia de base nacional − entendo que, perante o tal fenómeno da globalização, só é possível conceber uma resposta social-democrata com perspectiva de sucesso a uma escala supranacional.

Eurodeputado do PS

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