O Presidente-celebridade

Marcelo vulgarizou até o exercício do poder presidencial de magistratura de influência. Este talvez tenha sido o aspecto em que inovou a interpretação e o desempenho dos poderes constitucionais do Presidente.

o primeiro ano enquanto Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa foi claríssimo nos seus objectivos políticos: salvaguardar que não haja campo para que ninguém lhe possa apontar responsabilidades por não ter colaborado para uma situação política estável, caso venha a correr mal a inédita solução governativa minoritária apoiada numa maioria parlamentar de esquerda.

A transparência com que cumpriu a sua função de Presidente foi absoluta. Desde o primeiro dia, mostrou ao que vinha. E disse-o de forma quotidiana, falando mesmo várias vezes ao dia, numa atitude assumida de banalização do estatuto de primeiro órgão de soberania, vulgarizando até o exercício do poder presidencial de magistratura de influência. Este talvez tenha sido o aspecto em que inovou a interpretação e o desempenho dos poderes constitucionais do Presidente.

Fê-lo, como tem sido explicado até pelo próprio, para esvaziar crispações políticas que estavam ao rubro no momento em que tomou posse, quando era imensamente contestada a aposta de António Costa numa leitura constitucional que dá ao Parlamento o poder de ser o detentor da legitimidade eleitoral e ao Governo o direito de viver apenas da legitimidade parlamentar.

Marcelo fê-lo, porém, de uma forma própria, sobre a qual não colhem interpretações do seu desempenho que o aproximam de Mário Soares. A começar pelo facto básico de que decorreram 30 anos desde que Soares entrou de Belém e 25 anos do fim do seu primeiro mandato. O país é outro, a forma de fazer política mudou, a relação entre a os políticos e as pessoas transformou-se radicalmente. São mundos diferentes aqueles em que Marcelo é Presidente e em que Soares o foi.

Naturalmente, ambos são políticos e, como tal, há objectivos políticos expressos no exercício do mandato presidencial. Soares geriu os seus dois mandatos na relação de forças com o seu último grande adversário político, Cavaco Silva. Primeiro para ganhar o seu apoio, depois para tentar contribuir para a sua queda. O que Marcelo mostrou, até agora, foi o objectivo político claro de não deixar dúvidas de que não será pela sua acção que o Governo se pode queixar de falhar. Pelo contrário: às vezes, até exagera na forma como anda com António Costa ao colo. E vai condicionando o PS a apoiar a sua recandidatura.

É, além disso, clara a diferença de personalidade e de estatuto entre ambos. Soares era de outra geração. Moldado em outro aço. Quando foi o 25 de Abril, raiava os 50 anos. Possuía um currículo de figura política de primeiro plano. Era já um líder. Nascera e vivera politicamente num outro Portugal, num Portugal do antigo regime, em que a estratificação social e as relações sociais eram radicalmente diversas das de hoje.

Daí que a relação que estabelecia com o povo — como então se chamava ao que hoje se chama pessoas — fosse sempre a de um "grande Senhor". Era recebido pelo povo com um respeito antigo, venerando e admirador. Comportava-se com altivez, embora soubesse "descer", escutar e falar com o povo — como só vi, ainda que com outra dimensão, em Krus Abecasis. Mas o povo nunca deixava de o ver como um "grande Senhor", mesmo quando o contestava. Muito longe da relação de "afectos" que Marcelo escolheu estabelecer com a população.

Marcelo comporta-se e é aceite como um companheiro. É visto e está perante os outros como um igual. Contribui para essa proximidade, não só o novo mundo e o novo Portugal em que vivemos, mas também a vivência do cristianismo que lhe é peculiar.

Determinante, porém, na relação que estabelece com as pessoas é o facto de ter sido eleito Presidente enquanto celebridade da sociedade-espectáculo. Mais do que pelo seu percurso político, que está apenas na memória de alguns, Marcelo é a celebridade televisiva que todos tiveram perto de si, semanalmente, através da TV. É um político de uma nova era. É o Presidente-celebridade.

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