A culpa é do politicamente correcto…

A História é virada do avesso, como se o actual Presidente dos Estados Unidos não fosse um primata político e um racista visceral.

Não frequento as redes sociais por uma questão de liberdade individual e higiene mental face aos vírus propagados através dessas redes: a histeria comunicacional, as fake news, os abusos do anonimato e da identidade alheia, os insultos pessoais, os delírios ideológicos ou propagandísticos. Mas não contesto nem a sua existência – seria um absurdo! – nem o direito à sua utilização responsável, embora se trate de um universo onde predomina a lei da selva e para o qual só agora começa a colocar-se a necessidade de normas e regulação básicas.

Vimos, nos últimos dias, como acontecimentos insignificantes ou até grotescos se tornaram fenómenos virais. Exemplos: a polémica à volta do "machismo" de uma canção de Chico Buarque ou a controvérsia sobre a (des)igualdade de género alimentada pelos livros para as meninas e os meninos, entretanto retirados do mercado pela respectiva editora, sob recomendação do Governo.

Estas discussões frívolas foram logo aproveitadas pelos cruzados da "incorrecção política" em nome da liberdade de expressão. Ora, se a chamada correcção política tão em voga nos países anglo-saxónicos desde há algumas décadas pode constituir uma forma de fanatismo alimentada por movimentos muito diversos – particularmente de inspiração sexual e racial –, ela tornou-se recentemente um álibi hipócrita para silenciar ou desculpar a violência racista e neonazi em Charlottesville e a forma como Trump veio relativizá-la (abstraindo até o atropelamento mortal de uma manifestante por um activista da extrema-direita).

A irrupção de ódio primitivo e bárbaro dos fascistas americanos seria, assim, uma consequência directa do proselitismo politicamente correcto dos seus opositores. Ou seja, se estes não existissem ou estivessem quietos e calados, nada teria acontecido e os nostálgicos do esclavagismo que Lincoln derrotou na Guerra Civil manter-se-iam adormecidos na sua toca ou a festejar inofensivamente as estátuas dos generais esclavagistas erguidas no Sul dos Estados Unidos.

A História é virada do avesso, como se o actual Presidente dos Estados Unidos não fosse um primata político e um racista visceral (como é comprovado pela sua trajectória política e empresarial, documentada na última edição da revista Time, cujo tema de capa é o "Ódio na América"). Imperador das redes sociais, o Trump dos tweets compulsivos e a destilar desprezo e rancor a todos os que dele discordam – incluindo membros da sua família partidária – é, afinal, um produto e eventualmente uma vítima inocente do "politicamente correcto". Basta ler alguns comentadores do jornal electrónico Observador para chegarmos a essa conclusão edificante. Só falta mesmo que gente tão insuspeita como os antigos presidentes Bush, chocados com a atitude de Trump sobre os acontecimentos de Charlottesville, sejam também declarados "politicamente correctos".

Permito-me recordar que também eu não escapei à ira dos "politicamente correctos" quando escrevi há longos anos um editorial neste jornal em que me perguntava se não estaríamos a assistir ao nascimento de uma "geração rasca". Reagi, então, a imagens dos jovens que protestavam com insultos desbragados e órgãos genitais à mostra contra a ministra da Educação Manuela Ferreira Leite. E se ainda hoje me atiram à cara essa generalização abusiva que ofendia a honra de uma geração, a verdade é que esse tipo de protestos não voltou depois a acontecer (não por mérito meu, certamente, mas pela consciencialização por parte das massas estudantis de que aquele tipo de protestos não era admissível). Sim, não simpatizo com o primarismo "politicamente correcto", mas simpatizo ainda menos com os que o utilizam como desculpa para um primarismo bem mais repugnante.

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